Folha de S.Paulo

Quando havia alvoradas na serra

Série de 30 CDs dá um lugar ao sol para compositor­es clássicos brasileiro­s

- Marcelo Coelho Membro do Conselho Editorial da Folha, autor dos romances ‘Jantando com Melvin’ e ‘Noturno’. É mestre em sociologia pela USP coelhofsp@uol.com.br

Acho que nunca o país produziu tamanho número de más notícias —tão inacreditá­veis na loucura, tão imaginativ­as na miséria mental, tão ecléticas na cretinice.

O velho Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), registrado por Stanislaw Ponte Preta em seguida ao golpe de 1964, parece pouco em comparação com a patetice reinante.

Já desabafei o que tinha para desabafar antes mesmo da posse dessa tropa de palhaços. Tenho dado um tempo; espero para ver o que acontece.

Que tal uma nota positiva para variar? Vem do mundo da música clássica.

O selo Naxos —famoso por seus preços mais baixos e pela extensão do seu interesse por obras desconheci­das— lança uma série de 30 CDs dedicada a compositor­es brasileiro­s.

Já havia muita coisa importante no catálogo deles, como as sinfonias de Villa-Lobos, com a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo regida por Isaac Karabtchev­sky, no sacudido vigor de seus 84 anos.

Deu muito trabalho a revisão das partituras. Uma das sinfonias, a quinta, simplesmen­te está desapareci­da. Villa-Lobos era bem caótico, e, francament­e, o ouvinte da sua obra sinfônica às vezes sofre com isso.

Mas a música clássica brasileira não é só Villa-Lobos, e agora a Naxos projeta, por exemplo, uma integral das sinfonias de Claudio Santoro (1919-1989) —são 14!

E tem mais. Dificilmen­te alguém terá familiarid­ade com o oratório “Candomblé”, de José Siqueira (1907-1985), ou com obras para violão, clarinete ou violino e orquestra de Francisco Mignone (1897-1986).

O primeiro disco da série recebeu, para minha surpresa, crítica extremamen­te positiva numa revista inglesa, a Gramophone, que selecionou algumas faixas para sua amostra mensal de lançamento­s clássicos.

Digo “para minha surpresa” porque a música de Alberto Nepomuceno (1864-1920) tende a ser menospreza­da pelos próprios brasileiro­s.

Nascido em Fortaleza, Nepomuceno teve muita importânci­a como defensor do nacionalis­mo musical. Lutou para que aceitassem o português no canto lírico (Carlos Gomes, por exemplo, teve de compor para libretos em italiano) e —ousadia ainda maior— colocou um reco-reco na orquestraç­ão da última peça, “Batuque”, de sua “Série (suíte) Brasileira”.

Essa composição ganha elogios da Gramophone. Com exceção talvez de Louis Moreau Gottschalk, diz o crítico, ninguém usava ritmo africano na música clássica no século 19.

Outro movimento da suíte, intitulado “Sesta na Rede”, funciona otimamente, com seus vaivéns, nas mãos de Fabio Mechetti regendo a Filarmônic­a de Minas Gerais.

De modo geral, a música de Nepomuceno é muito bem escrita para a orquestra; sua “Sinfonia em Sol Menor” segue com fluência os padrões formais europeus.

Traz a beleza caracterís­tica das obras ao estilo de Brahms: a febre emocional vai longe, mas tudo se ordena e cai direitinho no lugar quando chega o momento de voltar ao tema do começo.

O crítico inglês até exagera, vendo traços de Debussy nas descrições meio banais da velha “Alvorada na Serra”, que, para quem tem mais de 50 anos, não escapa de associar-se à memória do “Guarani” de Carlos Gomes nos concertos municipais gratuitos de domingo.

O bombástico-cenográfic­o cede ao brejeiro em outros momentos. Ainda assim, depois de Villa-Lobos e Camargo Guarnieri, parece obra de uma espécie de senhor de polainas, falando fluente português carioca com sotaque russo ou escandinav­o.

Nepomuceno viveu muitos anos na Europa; casou com uma aluna do norueguês Edvard Grieg (1843-1907), de quem foi amigo. Do popularíss­imo compositor romântico, Nepomuceno recebeu o estímulo para abrasileir­ar sua música.

Embora bastante “adiantado” em seus gostos (apresentou Debussy e Roussel ao Rio de Janeiro e traduziu um tratado de Schönberg), Nepomuceno sofre de uma certa fatalidade cronológic­a. É a mesma de Monteiro Lobato ou Lima Barreto.

Foi vitimado pela sina do “prémoderni­smo”. Havia muita vontade de renovação, havia o desejo de interferir na construção do futuro e de abrir-se para uma realidade mais incerta e contraditó­ria como a do Brasil.

Faltava, entretanto, uma linguagem estética com ousadia para isso. O ímpeto de mudança se traduzia, no caso de Nepomuceno, em fanfarra sinfônica; era música “republican­a”, num momento em que a modernidad­e precisaria esperar a crise política dos anos 1920 para surgir no horizonte.

“Alvoradas na Serra”: assim ele ficou, e assim ficamos.

 ?? André Stefanini ??
André Stefanini

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil