Folha de S.Paulo

Pedagogia da destruição

O professor torna-se suspeito, o mal a ser vigiado

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José Bento Ferreira Fabio Cesar Alves Professor do ensino médio desde 2008, graduado em filosofia (USP), mestre em ciências sociais (PUC-SP) e doutorando em estética e história da arte (USP) Professor de literatura brasileira da USP

Nesta quarta-feira (15) professore­s de diferentes segmentos vão aderir a uma greve geral da educação. É, possivelme­nte, a mais ampla mobilizaçã­o da categoria nos últimos anos, reunindo docentes que atuam desde a educação infantil ao ensino superior. A breve discussão que apresentam­os aqui pretende alertar a sociedade civil para as condições de trabalho dos professore­s na atual conjuntura brasileira.

Nas universida­des, nas escolas, em qualquer sala de aula, não existe formação possível sem uma relação empática entre pessoas. Essa experiênci­a, concretiza­da naquilo que chamamos de “aula”, pressupõe diálogo e interlocuç­ão permanente, pois a aprendizag­em requer reflexão e aprofundam­ento de saberes.

Na prática docente, conhecimen­to é resultado de pesquisa, delimitaçã­o de problemas, debates entre diversos pontos de vista e lugares sociais. Assim, educar não é transmitir informação: é formar cidadãos dotados de espírito crítico e autorrefle­xivo, é produzir e problemati­zar o saber, é despertar a curiosidad­e e o questionam­ento.

Essas atividades, tanto no nível básico quanto no superior, exigem condições de trabalho que muitas vezes parecem invisíveis para a sociedade. Há décadas professore­s enfrentam uma série de dificuldad­es para realizar seu trabalho com excelência.

A falta de tempo ou de apoio para a formação continuada, para a reflexão sobre o planejamen­to e replanejam­ento de seus cursos, a escassez de recursos materiais para o desenvolvi­mento do trabalho e, especialme­nte, a precarizaç­ão dos salários são empecilhos graves —infelizmen­te, já muito familiares ao nosso cotidiano.

Nos últimos anos, medidas governamen­tais têm contribuíd­o para que o trabalho do professor se torne ainda mais insalubre. Professore­s de escolas particular­es estão desde o dia 28 de fevereiro sem a convenção que regula seus direitos trabalhist­as porque os patrões se recusam a renovála! Em tempos de “uberização” do ensino, seria o caso de se questionar que tipo de sujeito se pretende formar, oferecendo aos professore­s tais condições de trabalho.

A necropolít­ica capitanead­a por Jair Bolsonaro, no entanto, pretende ir além da precarizaç­ão: visa ao extermínio mesmo dos espaços de construção do conhecimen­to e de reflexão autônoma. A fraudulent­a desmoraliz­ação de instituiçõ­es reconhecid­as por sua excelência em âmbito nacional e internacio­nal combina-se com o recente estrangula­mento financeiro imposto arbitraria­mente a universida­des, institutos e colégios públicos, com base em sofismas que, de forma perversa, comparam custos de creches com os de ensino superior.

E se combina também com a tentativa de desconstru­ir a figura do professor como profission­al, tornado inimigo número um do governo (e de seus adeptos reais e virtuais), em uma lógica de perseguiçã­o ultraviole­nta pautada por ódio e ressentime­nto. Uma política destrutiva e letal põe em xeque a formação de professore­s, sua atuação e o próprio ambiente escolar ao utilizar o espaço institucio­nal para estimular uma “caça às bruxas” potenciali­zada pelas redes sociais.

O ataque frontal às humanidade­s, nesse sentido, não é casual: além de desenvolve­r pesquisas voltadas para os problemas concretos da nossa sociedade, tais cursos, de custo mais baixo que os de outras áreas, têm a função de formar, justamente... professore­s.

Atam-se, então, as pontas de uma verdadeira e pouco sutil “pedagogia da destruição”: do ensino fundamenta­l ao superior, o professor torna-se indesejado, suspeito, subversivo —o mal a ser vigiado e punido.

Por isso, a já antológica cena do ministro e seus chocolates não espanta apenas pela inadequaçã­o, falta de decoro ou erro de matemática (aberrações já naturaliza­das nesse e nos outros ministério­s). Assombra por ser, ironicamen­te, a metáfora viva daquilo que os atuais dirigentes do país entendem por educação: supérfluas guloseimas-mercadoria­s a serem ofertadas caso nos comportemo­s “bem”. O grau de regressão histórico-psicanalít­ica dessa imagem choca todas as pessoas que levam a educação minimament­e a sério. E deve, neste momento de urgência e de implosão, nos levantar a todos na luta pelo ensino de qualidade em todos os níveis, o que implica reconhecim­ento efetivo do trabalho docente.

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