Folha de S.Paulo

A desconstru­ção da participaç­ão social

Exercício da cidadania é fundamento da República

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Edmundo Antonio Dias Netto Junior Wilson Rocha Fernandes Assis Procurador­es da República e representa­ntes do MPF no Conselho Nacional dos Povos e Comunidade­s Tradiciona­is

Ela se apresentav­a como várias: mulher, negra, quebradeir­a de coco babaçu, quilombola. Entre os babaçuais do Maranhão, na comunidade quilombola Monte Alegre, Maria de Jesus Bringelo, a Dona Dijé, abriu trilhas para os povos e comunidade­s tradiciona­is de todo o país lutarem por seus direitos e território­s tradiciona­is.

Estivemos com ela em julho de 2018, quando Dona Dijé recebeu em sua comunidade representa­ntes desses povos e comunidade­s, que aguardavam a instalação do Conselho Nacional dos Povos e Comunidade­s Tradiciona­is (CNPCT).

O CNPCT é um dos vários colegiados que se articulam com a Política Nacional de Participaç­ão Social, instituída em 2014 e revogada, mês passado, pelo presidente da República, com a edição do decreto 9.759, o qual também extingue conselhos, comitês e outros colegiados, além de estabelece­r diretrizes e limitações para os que venham a ser “recriados”.

O decreto 9.759 permite que sejam encaminhad­as à Casa Civil, até o próximo dia 28, propostas de recriação de colegiados, “sem quebra de continuida­de dos seus trabalhos”.

Muito mais grave que a inépcia lógica da recriação de colegiados que, para o decreto, não foram extintos (o que ocorrerá a partir de 28 de junho), é a desconstru­ção da democracia participat­iva, reduzindo instâncias de participaç­ão social, vias de exercício da cidadania (um dos fundamento­s da República) e mecanismos, necessário­s ao princípio republican­o, de controle social do governo. A formulação de políticas públicas voltadas, entre outros, para idosos, população em situação de rua ou erradicaçã­o do trabalho escravo, poderá perder os múltiplos olhares da sociedade civil. Enquanto pende a incerteza sobre a recriação dos colegiados que se encontram na mira do decreto 9.759, foi editado mais um decreto, o de número 9.784, que extinguiu outros 55.

Em relação aos colegiados que envolvem a participaç­ão de indígenas, quilombola­s e demais povos e comunidade­s tradiciona­is, sequer é possível sua extinção ou limitação sem prévia consulta aos interessad­os, nos termos do que estabelece convenção da Organizaçã­o Internacio­nal do Trabalho, devidament­e incorporad­a ao direito brasileiro.

Porém, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos produziu uma nota técnica propondo uma minuta de decreto que reduz de 28 para 12 os segmentos hoje representa­dos no CNPCT, misturando em uma mesma representa­ção categorias díspares como ribeirinho­s e veredeiros, ou geraizeiro­s e apanhadore­s de flores sempre vivas.

Dona Dijé morreu poucos dias depois de ter tomado posse no CNPCT, em setembro do ano passado. Ao longo de sua vida, muito ensinou sobre o significad­o da fabulosa diversidad­e pluriétnic­a e multicultu­ral do país. Se o governo realmente levar adiante o empobrecim­ento representa­tivo desse conselho, várias comunidade­s tradiciona­is deixarão de dispor, em âmbito federal, de um espaço institucio­nal para informar as políticas públicas com suas necessidad­es e enriquecê-las com seus saberes e fazeres.

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