Folha de S.Paulo

Guia cego em zigue-zague

- Maria Hermínia Tavares Professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisado­ra do Cebrap. Escreve às quintas-feiras mhermtavar­es@gmail.com

Em outubro do ano passado, um grande número de eleitores não sabia o que estava fazendo. Deram a vitória a um candidato presidenci­al que, desde a posse, dia sim, o outro também, faz o que não sabe.

Dure quanto durar no poder, ele já entrou para a história como primeiro chefe do governo nacional exercendo à perfeição o papel do proverbial cego guiando em zigue-zague seus cegos seguidores.

No percurso, atropela ministros, aliados, direitos constituci­onais e, especialme­nte, as regras não escritas que regem o funcioname­nto do nosso presidenci­alismo de coalizão.

Nele, o presidente tem muitos poderes, mas não consegue governar sem uma base que lhe dê apoio seguro nas duas casas legislativ­as. E aquela não sai naturalmen­te do resultado das urnas. A formação da coalizão de governo é uma realidade inescapáve­l.

O presidente constrói sua maioria negociando, com os partidos dispostos a lhe dar arrimo, posições no ministério ou em agências do governo e outras demandas que possam ter seus parlamenta­res ou apoiadores.

Aquela negociação é tão necessária quanto delicada e requer um presidente com liderança política, espírito aberto e muita capacidade para transigir. Qualidades que Fernando Henrique e Lula tinham de sobra e que faltam clamorosam­ente ao novo presidente.

Sem entender esse xadrez político, nem inteligênc­ia política para aprender, Bolsonaro formou o governo de olho no Twitter e de costas para o Congresso e este lhe está retribuind­o.

O líder da “bancada da bala”, que se suporia integrante seguro do bolsonaris­mo de raiz, comparou a situação do presidente à de Dilma Rousseff em seu segundo mandato. “De cada dez deputados, oito reclamam e dois ficam quietinhos. Ninguém defende o governo”, disse ao jornal Valor.

Recentemen­te, a comissão do Congresso que analisou a MP 870 da reforma da estrutura do governo devolveu a Funai ao Ministério da Justiça e dele tirou o Coaf cobiçado pelo ministro Moro, enquanto a comissão mista criada para opinar sobre a MP que extingue a contribuiç­ão sindical trama fazê-la caducar, e a consultori­a técnica do Senado aponta inconstitu­cionalidad­es no texto do decreto da permissão ampliada para o porte de armas.

São numerosas as vezes em que o presidente da Câmara tornou público o desconfort­o com os zigue-zagues do governo.

Há mais de duas décadas, o professor Octavio Amorim Filho (FGV-RJ) mostrou que governos nos quais ministros eram individual­mente cooptados, sem refletir a distribuiç­ão de forças no Congresso, resultaram em crises fatais. Seus exemplos: Jânio Quadros, João Goulart e Collor de Melo.

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