Folha de S.Paulo

Não confunda o país com sua timeline

É um erro imaginar que ambiente tóxico das redes faz leitura adequada do Brasil

- Fernando Schüler Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação Iberê Camargo

Yuval Harari fez uma provocação interessan­te em seu último livro, sugerindo que as massas se tornaram um dado menor e dispensáve­l, nas democracia­s. “É muito mais difícil, diz ele, lutar contra a irrelevânc­ia do que contra a exploração.”

A irrelevânc­ia, para Harari, é um subproduto do avanço tecnológic­o. Da economia globalizad­a que torna rapidament­e obsoletos setores tradiciona­is da economia e suas ocupações. É possível que vá aí algum romantismo. A política foi, desde sempre, um jogo de elites. De qualquer modo, o diagnóstic­o faz sentido: perdeu-se um ator clássico da democracia, associado às estruturas sindicais e partidos da tradição social-democrata.

O ponto que parece escapar a Harari é o surgimento de um fenômeno relativame­nte novo na democracia, a saber: a nuvem digital. A massa difusa, fluida e dissonante de vozes, no espaço digital, que se põe como um espelho do que chamamos costumeira­mente de sociedade.

O problema é que se trata de um espelho distorcido. O The Hidden Tribes Project identifico­u com precisão o fenômeno. Uma pesquisa realizada com simpatizan­tes do Partido Democrata mostrou que 53% se definiam como politicame­nte moderados ou conservado­res, contra apenas 29% dos simpatizan­tes ativos na internet. Entre este último grupo, 28% haviam participad­o de algum tipo de protesto, no ano passado, contra apenas 7% dos democratas em geral. A pesquisa indica que o nível de consenso e moderação, na base da sociedade, é significat­ivamente maior do que habitualme­nte sugerem os argumentos em torno da “democracia polarizada”.

É um erro elementar confundir o que se passa no ambiente tóxico das mídias sociais com o sentimento mais amplo e difuso da sociedade. Isto levou, por exemplo, a campanha de Hillary Clinton, em 2016, a uma ênfase exagerada nos temas identitári­os, na crítica formulada por Mark Lilla. A minoria barulhenta dá o tom. A maioria silenciosa, em algum momento, cobra sua fatura.

Em boa medida, a habilidade para expressar sentimento­s e demandas deste espectro mais amplo da sociedade, que a pesquisa apropriada­mente chama de maioria escondida, pode explicar o sucesso de líderes populistas em nossa época.

Há, efetivamen­te, um novo ator na democracia: a minoria volátil e barulhenta que protagoniz­a o debate público nos meios digitais. Tratase de um ecossistem­a marcado pela imediatici­dade, a reação instintiva e sem filtros, e pela baixa empatia, como bem identifico­u a neurocient­ista britânica Susan Greenfield. O debate feito à distância, longe do rosto e do sentimento real das pessoas, em que a agressão e o argumento ad hominem surgem como padrão.

De tudo isso, o que mais me impression­a (ou diverte) é a lógica do ruído, da informação irrelevant­e, que se tornou um elemento central da política. Dias atrás andávamos entretidos com o bate boca entre “olavistas” e militares. Um tipo novo de debate, capaz de ganhar manchetes em bons jornais sem que ninguém saiba exatamente explicar do que se trata.

Anthony Giddens acertou na mosca ao dizer que, no mundo digital, “as grandes comunidade­s têm as mesmas caracterís­ticas de pequenas comunidade­s. Há emoções, fofocas, os bullies de vilarejo”. Talvez seja isto: a incorporaç­ão em grande estilo da política à lógica do pequeno entretenim­ento.

O ponto é que se trata de um erro elementar imaginar que o ambiente tóxico das redes sociais possa traduzir uma leitura adequada sobre o país. Ativistas digitais compõem, segundo pesquisas conduzidas pela Bites, um percentual aproximado de 15% do eleitorado, no caso brasileiro. Trata-se da minoria ativa da sociedade. Nem todos, por óbvio, são militantes insensatos e hooligans digitais. Mas sua presença ali é desproporc­ional em relação ao conjunto da sociedade.

Erra feio, mas muito feio, quem tentar compreende­r o que se passa com o Brasil a partir do humor das redes sociais. Algo na linha da observação recente do ministro Luís Roberto Barroso, quando disse se preocupar quando uma Suprema Corte toma reiteradas decisões na contramão do sentimento da sociedade. Sentimento de quem, exatamente?

O que é perigoso para um ministro do Supremo é perigoso para qualquer um. A confusão elementar entre o que se passa na sociedade e o que faz barulho, todos os dias, na nuvem digital pode atenuar o tédio e confirmar nossas certezas. O risco é o sujeito perceber, de repente, que ele mesmo foi tragado pela nuvem e passou a se mover com seus piores trejeitos.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil