Na Índia, governo destina mais verba para vacas do que para as mulheres
Discurso de proteção ao animal é usado por premiê para inflamar nacionalismo e angariar apoio político
“O governo nunca vai deixar de honrar as vacas”. Foi assim que o ministro interino das Finanças da Índia, Piyush Goyal, anunciou, em fevereiro deste ano, que destinaria 7,5 bilhões de rúpias (R$ 420 milhões) do orçamento do país para um programa que visa a aumentar a produção de leite e garantir o bem-estar desses animais.
No mesmo orçamento, o governo reservou apenas 4,1 bilhões de rúpias (R$ 232 milhões) para os principais programas voltados às mulheres, segundo levantamento da economista Ritu Dewan, ex-diretora do departamento de economia da Universidade de Mumbai e vice-presidente da Sociedade Indiana de Economia do Trabalho.
Isso porque existem 497 milhões de mulheres na Índia, contra 190 milhões de vacas. “Ou seja, existe mais dinheiro para proteção de vacas do que de mulheres na Índia”, disse Dewan à Folha.
A vaca é um animal sagrado para os indianos e os laticínios são uma das principais fontes de proteínas da população.
Durante o governo de Narendra Modi, foram implementadas várias políticas de proteção a esses animais que agradaram à base nacionalista hindu do premiê.
A maioria dos estados já havia proibido o abate de bovinos, mas, após assumir, Modi apertou o cerco contra abatedouros clandestinos e contrabando dessa carne.
Extremistas hindus, chamados “guardiões das vacas”, passaram a perseguir pessoas que transportam vacas, assim como suspeitos de matálas ou consumir sua carne.
De acordo com a organização de checagem de fatos Fact Checker, aumentou em 1.033% o número de linchamentos de pessoas acusadas de comer carne bovina ou de matar os animais entre 2014, primeiro ano do governo Modi, e 2018.
Desde que o premiê assumiu, houve 120 linchamentos relacionados a vacas e 46 mortes. Os ataques dos “guardiões” normalmente são filmados —os vídeos costumam viralizar no WhatsApp.
Simplesmente transportar vacas se tornou uma atividade de risco. Em 2017, um homem de 55 anos que levava gado em um caminhão morreu após ser linchado por 200 pessoas no Rajastão.
Os “guardiões das vacas” barraram cinco caminhões na estrada, retiraram os homens muçulmanos de dentro dos veículos e os espancaram com barras de ferro. Eles levavam os animais a uma fábrica de laticínios, e não para serem abatidos —o que é ilegal no estado.
Os 11 homens que transportavam o gado foram detidos e acusados de contrabando de vacas. Nenhum dos envolvidos no linchamento foi preso, embora a polícia tenha aberto uma investigação.
“A vaca é a nossa mãe, então, quando alguém mata nossa mãe, deve ser punida com prisão perpétua, no mínimo, e multa”, disse à Folha Deepak Tiwari, que trabalha na área de tecnologia da empresa de eletricidade de Déli.
Tiwari é membro da Rashtriya Swayamsevak Sangh (RSS), a organização fundamentalista hindu que apoia o partido governista, o BJP —e de onde veio o primeiro-ministro. A entidade pressiona pelo endurecimento das medidas de proteção aos animais.
“O uso da religião como instrumento de mobilização política não é novo. Mas hoje milhões de pessoas na Índia estão sendo manipuladas desta maneira”, Jagdeep Chhokar, fundador da Associação para Reformas Democráticas na Índia.
Outros analistas dizem que não é justo acusar Modi de usar a religião para manter sua base. “É uma simplificação incorreta dizer que ele só tem apoio porque manipula as pessoas pela religião”, disse Apurv Mishra, pesquisador sênior da India Foundation.
Modi condena os linchamentos, mas diz que seu governo não pode ser responsabilizado. Em janeiro, afirmou: “Ninguém deve apoiar esses incidentes, isso é totalmente errado e condenável”. Ele afirma que os linchamentos não começaram em 2014 e que há uso político do tema.
Para a economista Dewan, o governo Modi deveria ser mais contundente ao condenar e coibir esse tipo de ação.
Em julho do ano passado, o ministro de Aviação, Jayant Sunha, recebeu com coroas de flores oito “guardiões de vacas” condenados à prisão perpétua pelo linchamento. Os oito conseguiram pagar fiança e obter liberdade condicional.