Folha de S.Paulo

Na Índia, governo destina mais verba para vacas do que para as mulheres

- Patrícia Campos Mello

Discurso de proteção ao animal é usado por premiê para inflamar nacionalis­mo e angariar apoio político

“O governo nunca vai deixar de honrar as vacas”. Foi assim que o ministro interino das Finanças da Índia, Piyush Goyal, anunciou, em fevereiro deste ano, que destinaria 7,5 bilhões de rúpias (R$ 420 milhões) do orçamento do país para um programa que visa a aumentar a produção de leite e garantir o bem-estar desses animais.

No mesmo orçamento, o governo reservou apenas 4,1 bilhões de rúpias (R$ 232 milhões) para os principais programas voltados às mulheres, segundo levantamen­to da economista Ritu Dewan, ex-diretora do departamen­to de economia da Universida­de de Mumbai e vice-presidente da Sociedade Indiana de Economia do Trabalho.

Isso porque existem 497 milhões de mulheres na Índia, contra 190 milhões de vacas. “Ou seja, existe mais dinheiro para proteção de vacas do que de mulheres na Índia”, disse Dewan à Folha.

A vaca é um animal sagrado para os indianos e os laticínios são uma das principais fontes de proteínas da população.

Durante o governo de Narendra Modi, foram implementa­das várias políticas de proteção a esses animais que agradaram à base nacionalis­ta hindu do premiê.

A maioria dos estados já havia proibido o abate de bovinos, mas, após assumir, Modi apertou o cerco contra abatedouro­s clandestin­os e contraband­o dessa carne.

Extremista­s hindus, chamados “guardiões das vacas”, passaram a perseguir pessoas que transporta­m vacas, assim como suspeitos de matálas ou consumir sua carne.

De acordo com a organizaçã­o de checagem de fatos Fact Checker, aumentou em 1.033% o número de linchament­os de pessoas acusadas de comer carne bovina ou de matar os animais entre 2014, primeiro ano do governo Modi, e 2018.

Desde que o premiê assumiu, houve 120 linchament­os relacionad­os a vacas e 46 mortes. Os ataques dos “guardiões” normalment­e são filmados —os vídeos costumam viralizar no WhatsApp.

Simplesmen­te transporta­r vacas se tornou uma atividade de risco. Em 2017, um homem de 55 anos que levava gado em um caminhão morreu após ser linchado por 200 pessoas no Rajastão.

Os “guardiões das vacas” barraram cinco caminhões na estrada, retiraram os homens muçulmanos de dentro dos veículos e os espancaram com barras de ferro. Eles levavam os animais a uma fábrica de laticínios, e não para serem abatidos —o que é ilegal no estado.

Os 11 homens que transporta­vam o gado foram detidos e acusados de contraband­o de vacas. Nenhum dos envolvidos no linchament­o foi preso, embora a polícia tenha aberto uma investigaç­ão.

“A vaca é a nossa mãe, então, quando alguém mata nossa mãe, deve ser punida com prisão perpétua, no mínimo, e multa”, disse à Folha Deepak Tiwari, que trabalha na área de tecnologia da empresa de eletricida­de de Déli.

Tiwari é membro da Rashtriya Swayamseva­k Sangh (RSS), a organizaçã­o fundamenta­lista hindu que apoia o partido governista, o BJP —e de onde veio o primeiro-ministro. A entidade pressiona pelo endurecime­nto das medidas de proteção aos animais.

“O uso da religião como instrument­o de mobilizaçã­o política não é novo. Mas hoje milhões de pessoas na Índia estão sendo manipulada­s desta maneira”, Jagdeep Chhokar, fundador da Associação para Reformas Democrátic­as na Índia.

Outros analistas dizem que não é justo acusar Modi de usar a religião para manter sua base. “É uma simplifica­ção incorreta dizer que ele só tem apoio porque manipula as pessoas pela religião”, disse Apurv Mishra, pesquisado­r sênior da India Foundation.

Modi condena os linchament­os, mas diz que seu governo não pode ser responsabi­lizado. Em janeiro, afirmou: “Ninguém deve apoiar esses incidentes, isso é totalmente errado e condenável”. Ele afirma que os linchament­os não começaram em 2014 e que há uso político do tema.

Para a economista Dewan, o governo Modi deveria ser mais contundent­e ao condenar e coibir esse tipo de ação.

Em julho do ano passado, o ministro de Aviação, Jayant Sunha, recebeu com coroas de flores oito “guardiões de vacas” condenados à prisão perpétua pelo linchament­o. Os oito conseguira­m pagar fiança e obter liberdade condiciona­l.

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Money Sharma - 26.mar.2019/AFP Cuidadores fecham os portões de um abrigo temporário para vacas em Pilani, no estado do Rajastão, na região noroeste do país

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