Professora-estrela admite não ter pós-doutorado em Harvard
“Uma falha, sem máfé”, disse a química e professora Joana D’Arc Félix de Sousa ao tentar explicar a inclusão de uma informação falsa no currículo que a alçou a prêmios, homenagens e a chance de uma cinebiografia. Exposta, ela alterou o documento.
Celebrada por seu triunfo acadêmico apesar das dificuldades vividas, ela alegava ter pós-doutorado na Universidade Harvard. A atividade na prestigiosa instituição, porém, nunca foi realizada pela professora, revelou na terça O Estado de S. Paulo.
“A gente se empolga e acaba falando demais”, disse ela de Franca (interior de São Paulo), onde vive, ao ser questionada pela Folha por telefone, nesta quarta (15). “É uma falha, peço desculpas, é uma falha.”
O currículo Lattes da cientista incluía a atividade nos EUA e era constantemente citado em eventos que exaltavam sua trajetória. Félix, que também é palestrante motivacional, alterou o documento na madrugada desta quarta.
A apuração do Estado surgiu de uma dúvida a respeito de sua idade. Em entrevistas, Félix diz que aos 14 anos foi aprovada nos vestibulares da USP (Universidade de São Paulo), Unesp (Universidade Estadual Paulista) e Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e iniciou a graduação na última delas.
De fato, ela estudou química na Unicamp, mas a partir de 1983, quando supostamente tinha 19 anos levando-se em conta a idade atual aferida pelo Estado de S. Paulo, 55 anos.
À Folha, em 2018, Félix dissera ter 48. E em entrevistas divulgadas por ela, a suposta passagem por Harvard teria ocorrido aos 24, o que levaria o ano de nascimento para 1974 (44 ou 45 anos hoje).
Já em sua página em uma rede social, ela diz ter nascido em 1980, o que significa que ela teria hoje 38 ou 39 anos.
Foi essa incongruência que atraiu o repórter Felipe Resk ao entrevistá-la em 2017: ela declarou ter 37 anos, mesma idade que cita em redes sociais. Como a matrícula na Unicamp é de 1983, seria impossível ela ter nascido em 1980.
A Folha está revisando todas as informações citadas em seu currículo e nas reportagens publicadas a respeito.
A Unicamp confirmou que Félix fez graduação, mestrado e doutorado na instituição nas datas listadas na plataforma Lattes: 1983-1986 (graduação); 1987-1990 (mestrado) e 1989-1994 (doutorado). A universidade informou à Folha que Félix já não tem vínculo com a instituição e que não divulga a idade de alunos.
No mestrado, Félix estudou a composição ácida do querosene de aviação. No doutorado, começou a desenvolver as pesquisas sobre reaproveitamento do couro e uso alternativo da pele de animais que a tornariam reconhecida —ela cita 15 patentes em seu nome.
Félix diz ser filha de empregada doméstica e funcionário de curtume. Relata ter sofrido discriminação racial e acusou a reportagem do Estado de ser motivada por racismo.
Em entrevistas, inclusive à Folha, ela afirmara que mortes na família a obrigaram a voltar dos EUA a Franca, onde prestou concurso para professora do curso de curtimento de couro de uma escola técnica agrícola do Instituto Paula Souza, onde permanece e orienta alunos. O retorno teria ocorrido após o pós-doc.
Depois da publicação da reportagem do Estado, porém, ela mudou a versão e afirmou que não concluiu a pesquisa. Indagada pela Folha novamente, afirmou ter recebido o convite e descartado por causa de problemas da família.
“Eu considerei [como pósdoutorado] a orientação que recebi do professor William Klemperer”, afirma. “Discutia o projeto, fui algumas vezes a seu laboratório, mas nunca fui efetivada como aluna porque não podia me ausentar por muito tempo, devido à saúde de minha mãe.”
O pós-doutorado é uma atividade de estágio ou pesquisa realizada dentro de uma universidade por quem já é doutor, mas não é título nem confere diploma. Contudo, a reportagem do Estado reproduz um diploma encaminhado pela professora ao repórter.
Questionada, ela alega que o papel foi produzido como brincadeira e enviado ao repórter por engano.
Harvard não emite o documento, e, ao ser procurada pela Folha, não confirmou nem desmentiu o convite e as visitas. Klemperer, suposto autor do convite, morreu em 2017.
Antes de mudar o currículo Lattes, a plataforma dizia que ela fez pós-doutorado em Harvard de 1997 a 1999. Após a alteração, a atividade teria sido interrompida em 1998.
Mas a mentira foi usada em publicações da professora em redes sociais. Uma delas tem sua foto ao lado da frase “Química, PhD em Harvard e soma mais de 80 prêmios”.
O pós-doc e o ingresso na universidade aos 14 anos também foram citados em entrevistas e em evento no Palácio dos Bandeirantes, no qual ela é elogiada pelo ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB).
Em sua primeira nota pública a respeito, Félix confirmou não ter concluído o pósdoutorado e disse que não foi aluna efetiva de Harvard, “porque o trabalho foi desenvolvido a distância” —algo então impossível no caso de uma atividade pós-doc que exige presença em laboratório.
Em outra publicação, escreve: “Peço desculpas por tudo que está ocorrendo. As publicações [de reportagens] estão sendo analisadas por um advogado e prometo respostas”.
Antes da revelação, o diretor Alê Braga e a atriz Taís Araújo anunciavam uma cinebiografia da professora.
“Tudo isso a partir da divulgação do filme [...] Tudo que foi publicado já está sendo apurado por um advogado ligado ao movimento negro brasileiro, porque tenho certeza que ainda estão achando que os negros(as) ainda têm que viver na senzala, ou seja, estão achando que os negro(as) não podem estudar, não podem ser doutores, não podem desenvolver pesquisa de ponta”, escreveu Félix.
Araújo, que desistiu do papel de Félix após protestos por interpretar uma mulher de pele mais escura que a sua, seria produtora-associada e afirmou, por meio de assessoria, ter sido surpreendida.
Braga disse que ele e a atriz querem ouvir a professora para decidirem sobre o projeto. “Ainda é muito prematuro falar”, disse, acrescentando que o filme estava em pré-pesquisa. A Globo Filmes, que seria a produtora, não se manifestou.
Sousa disse à Folha temer que o episódio afete seu trabalho em Franca. “Eu ajudei a tirar muita gente da prostituição, das drogas, esse trabalho não pode ser jogado no lixo.”
A gente se empolga e acaba falando demais. É uma falha, peço desculpas, é uma falha Joana D’Arc Félix de Sousa após admitir ter mentido sobre pós-doutorado em Harvard