Deus e o Diabo na terra do sol
Com homenagem a Euclydes da Cunha, Flip aposta em programa com temperatura política, guiado por indivíduos em confronto com Estado, tradição ou instituições
Inspirada por Euclydes da Cunha, o escritor homenageado do ano, a próxima Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) será marcada pela alta temperatura política, com uma programação com temas pinçados —ou surgidos como desdobramento— da obra do autor de “Os Sertões”.
A programação completa, de 10 a 14 de julho, foi anunciada na manhã desta quartafeira (15). Como nos últimos anos, a festa literária aposta em nomes internacionais menos conhecidos no Brasil.
Alguns temas atravessam todos os debates agendados: a crise climática, a ciência, a questão indígena. Esta última traz um recorte específico de outra linha que cruza o programa, que é a questão dos indivíduos em atrito com o Estado, a tradição ou instituições.
Os assuntos podem ser depreendidos do principal livro de Euclydes, que viajou para acompanhar a campanha militar contra Antônio Conselheiro e seus seguidores, na virada para o século 20, e voltou de lá horrorizado.
“Acho que é sim [política], mas menos ativista, mais para o universo da pesquisa”, diz Fernanda Diamant, curadora da edição. “Seria impossível homenagear o Euclydes sem esse viés. A ideia aqui é menos o quente da hora e mais a reflexão histórica sobre o país. Estamos no começo da República [quando a Guerra de Canudos acontece], sua fundação se dá dessa maneira. Seria incontornável não tratar dos assuntos relativos ao Brasil.”
A expectativa da produção do evento é que o orçamento deste ano chegue a R$ 5,4 milhões. No ano passado, o montante era de R$ 5,3 milhões —o menor do evento literário em 12 anos. Ainda não há notícias se o BNDES vai renovar o patrocínio ao evento neste ano.
Mauro Munhoz, presidente da Fundação Casa Azul, que organiza a festa, acenou com a possibilidade da volta do show de abertura, que não aconteceu nos últimos anos por conta da limitação de recursos.
Os indivíduos em confronto com forças maiores do que eles estão nas obras de nomes internacionais como o angolano Kalaf Epalanga, que se inspira em um episódio real, quando foi preso ao tentar cruzar uma fronteira europeia sem passaporte, para escrever “Também os Brancos Sabem Dançar” (Todavia). Já o franco-ruandês Gäel Faye trata do genocídio de Ruanda no romance “Meu Pequeno País” (Rádio Londres). Ambos refletem sobre suas condições de negros na Europa, entre outros assuntos.
Esse recorte também está na americana Kristen Roupenian, autora de “Cat Person e Outros Contos” (Companhia das Letras), que causou celeuma ao publicar o conto que dá título ao livro na revista New Yorker, em 2017. A história foi vista como um exemplo das agruras femininas, com uma personagem vítima de um homem que desrespeitaria a noção de consentimento. Ela divide a mesa com a canadense Sheila Heti, que acaba de lançar “Maternidade”, na qual discute a decisão feminina de ser mãe.
Os debates gênero surgem em nomes como a cubanoamericana Carmen Maria Machado, autora dos contos de “O Corpo Dela e Outras Farras”. A brasileira Jarid Arraes, autora de cordéis que lançará seu primeiro livro de contos na Flip, também tem uma obra de viés feminista.
Ainda dentro do campo político, mas no espectro da opressão estatal, está a venezuelana Karina Sainz Borgo, autora de “Noite em Caracas” (Intrínseca), romance sobre a destruição causada pelo chavismo em seu país. Ela foi um dos nomes mais badalados na Feira de Frankfurt de 2018. A presença do encenador Zé Celso, que fez uma montagem de “Os Sertões” no Teatro Oficina nos anos 2000, pode ser lida por uma chave semelhante —há anos ele se opõe à construção de uma torre ao lado do teatro, no terreno que pertence a Silvio Santos.
Outra autora dentro desse universo é a nigeriana Ayobami Adebayo, que escreveu “Fique Comigo” (HarperCollins), no qual reflete sobre a tradição poligâmica de seu país e seu efeito sob as mulheres — com um viés crítico, portanto.
Com ela, está uma das estrelas em ascensão da literatura internacional, a israelense Ayelet Gundar-Goshen, ainda pouco conhecida no Brasil. No romance “Uma Noite, Markovitch” (Todavia), sobre um jovem judeu que sai da Palestina para a Alemanha nazista, onde resgata uma jovem por meio de um casamento fictício. Já em Israel, ele recusa se divorciar, na esperança que ela um dia goste dele.
Já questão indígena, por exemplo, aparece no convite Aparecida Villaça, antropóloga formada no Museu Nacional e autora de “Paletó e Eu” (Todavia), em que relata sua relação filial com um líder indígena. Outro convidado é Ailton Krenak, uma das principais lideranças indígenas do país.
A ciência, por sua vez, está representada por Stuart Firenstein, biólogo da Universidade Columbia, nos Estados Unidos, com um livro em que defende como a ignorância serve para fazer avançar o conhecimento científico. Nessa esfera, mas tratando de mudança climática, participa do programa o jornalista americano David Wallace-Wells, autor de “A Terra Inabitável”.
Na lista de brasileiros estão nomes como Adriana Calcanhotto, José Miguel Wisnik, Marcelo D’Salete, Zé Celso e José Murilo de Carvalho, entre outros. A tradicional conferência de abertura da festa será realizada pela crítica literária Walnice Nogueira Galvão.
Outra novidade do ano será a existência de algumas mesas mais curtas, com duração de 45 minutos e apenas um convidado. As casas parceiras, um dos destaques da última edição, serão 21. A Flip promete resolver um dos principais problemas da edição passada, a dificuldade de se localizar em meio a uma programação paralela tão extensa, com um site no qual essas casas poderão publicar sua agenda de eventos e atualizá-las, caso haja mudanças de última hora.
Flip
De 10 a 14 de julho, em Paraty (RJ). R$ 55 (tenda principal) ou grátis (auditório da praça). Vendas a partir de 3 de junho, em flip.org.br/ingressos