Folha de S.Paulo

Soho em Botafogo

Áreas gentrifica­das têm uma atmosfera genuína de conexão entre as pessoas

- Zeca Camargo

A receita é simples. Junte uma sorveteria vegana, meia dúzia de butiques improvisad­as com roupas simples e surpreende­ntes de estilistas de quem você nunca ouviu falar, duas ou três lojas de design —serve “de decoração” também—, jovens chefs que se lançam em aventuras culinárias, pelo menos uma padaria “bio” e uma galeria de arte, um punhado de bares com cerveja artesanal e, se tiver um restaurant­e famoso que abra um espaço “alternativ­o” na vizinhança, melhor. Ah, e o toque final: gente bonita!

Pronto, o que você tem aí é um bairro gentrifica­do da melhor qualidade. Já visitei lugares assim em várias cidades pelo mundo: o Marais, em Paris, Shoreditch, em Londres, Palermo Hollywood, em Buenos Aires, o Bairro Alto, em Lisboa, e Chueca, em Madri.

E o próprio Soho, em Nova York —isso nos anos 1990, pois para achar algo com esse clima hoje em dia, o visitante vai ter que pegar um metrô e atravessar o rio de Manhattan até o Brooklyn.

São Paulo já tem a Vila Madalena há tempos. Mas e o Rio de Janeiro? “Amaldiçoad­a” com uma beleza estupenda e natural que “vende o seu peixe” quase sem esforço dos próprios cariocas, a cidade até pouco tempo atrás tinha escapado dessa transforma­ção.

Santa Teresa talvez tenha ensaiado alguma coisa assim. O Baixo Gávea esboçou. Mas, se o Rio finalmente pode dizer que ganhou um bairro gentrifica­do, trata-se de Botafogo.

Já usei o termo duas vezes e me ocorre que talvez muita gente não saiba o que significa a gentrifica­ção. O próprio corretor de texto do meu laptop segue sublinhand­o de vermelho qualquer variação dessa palavra.

Rapidament­e, o termo é usado para definir a transforma­ção de um bairro semidecade­nte de uma cidade num espaço urbano não só reaproveit­ado, mas redescober­to.

Muita gente torce o nariz para a ideia, especialme­nte quem sempre teve uma vida pacata num espaço desses e vê seu cotidiano transforma­do, talvez nem sempre para melhor.

As ruas ficam mais cheias de turistas. As fachadas das casas são repaginada­s. A vida noturna se aquece. E os preços —é apenas uma questão de tempo— disparam.

O processo é quase inevitável. Fugindo de aluguéis altíssimos que não conseguem pagar em um bairro nobre da cidade, jovens criadores —chefs, estilistas, baristas, arquitetos, sonhadores— se aproveitam dos preços baixos dos imóveis em ruas “esquecidas” e instalam lá suas usinas criativas. Inevitavel­mente, uma nova vida floresce.

Nunca morei numa área assim. Mas, como turista, só posso aprovar. A cidade ganha um novo ponto de visitas. Você descobre coisas (cores, formas, cheiros, sabores) que jamais encontrari­a num shopping manjado.

Existe uma atmosfera genuína de conexão nesses lugares, como se as pessoas que abrem seus negócios por lá tivessem como principal objetivo conhecer outras pessoas. E todo o mundo sai feliz.

Os nativos ganham um público interessan­te para mostrar seu trabalho. A economia local, ainda que modestamen­te, se movimenta.

Novas coisas aparecem: arte! E quem está de visita pode voltar para casa com o carimbo de descolado no passaporte.

Sou frequentad­or assíduo dos lugares que mencionei acima. Aliás, são tantos.

Graças a eles descobri coisas incríveis. De novos fadistas em Portugal a estilistas promissore­s na França, de um café memorável em Shimokitaz­awa, em Tóquio, ao meu barbeiro favorito no mundo, o Black Amber, em um beco de Sukhumvit, Bancoc, de grafiteiro­s ainda desconheci­dos no cenário mundial, na Nova York de 30 anos atrás, à melhor pizza que já comi na vida... na Argentina!

Sempre circulo por esses endereços admirado e respeitoso, como a maioria das pessoas.

Mas há as exceções e, por conta delas, os locais têm todo o direito de protestar quando esse movimento todo começa a interferir na dia a dia.

Já encontrei muita gente de nariz torcido a reclamar: madrilenho­s, parisiense­s, lisboetas, portenhos, nova-iorquinos. Mas, como frequentad­or assíduo dessas áreas, eu peço paz. Deixe a gente invadir a sua praia.

Ah, e me vê um cappuccino orgânico com leite de amêndoa e uma pitada de cardamomo, por favor!

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Maíra Mendes

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