Folha de S.Paulo

Kleber Mendonça exibe ‘Bacurau’ em Cannes e baixa tom político

Três anos após ‘Aquarius’, diretor retorna a Cannes para disputar a Palma de Ouro, não faz protesto e colhe críticas elogiosas

- Guilherme Genestreti O jornalista se hospeda a convite do Festival de Cannes

“Bacurau”, filme que marca o retorno do diretor Kleber Mendonça Filho à disputa pela Palma de Ouro, é um western —ou melhor, um “nordestern”— que presta homenagem ao cangaço e mostra um Brasil distópico, com rixa acirrada entre Norte e Sul, e armado até o talo. Não faltará quem veja aí ecos do país sob o governo Bolsonaro, ainda que o projeto date de 2009.

A produção, que o pernambuca­no dirigiu em parceria com o conterrâne­o Juliano Dornelles, estreou no Festival de Cannes nesta quarta (15).

Desta vez, no entanto, sem protesto no tapete vermelho, como ocorreu três anos atrás com o ruidoso ato anti-impeachmen­t que precedeu a estreia de “Aquarius” no evento. A atriz Sonia Braga, que havia marcado presença naquele ano e que também está no elenco da nova produção, tampouco compareceu. Teve compromiss­os em Nova York.

O novo longa representa uma inflexão na obra dos dois diretores, que até então ambientava­m suas tramas no Recife e voltavam suas lentes para as distorções da vida urbana brasileira. Agora deslocam a ação para uma cidadezinh­a fictícia no sertão e deixam de lado o drama social para abraçar de vez as convenções do chamado cinema de gênero.

Bacurau, nome de um pássaro noturno e dos ônibus do último horário na capital pernambuca­na, é o vilarejo isolado onde a trama se passa. Após a morte de Carmelita (Lia de Itamaracá), nonagenári­a que é uma espécie de matriarca local, os habitantes do povoado, entre eles Domingas (Sonia Braga), se dão conta de que o lugar sumiu do mapa. É mais um problema, que se soma ao desabastec­imento e ao descaso de um prefeito corrupto.

A nova ameaça tem a ver com os planos de agentes estrangeir­os apoiados por dois subservien­tes do Sudeste (Karine Teles e Antonio Saboia). A esperança da cidade reside no fora da lei Lunga (Silvero Pereira), que vive proscrito numa espécie de fortaleza, e na união de seus habitantes.

De tom mais cômico que os longas pregressos de Kleber, “Bacurau” é também mais hermético que “O Som ao Redor” e “Aquarius”. O cineasta parece ter escolhido trocar um cinema repleto de mensagens diretas, muitas vezes expressas sem rodeios na boca dos personagen­s, por um outro com referência­s mais alegóricas.

Ainda assim, é um filme de tese. A cidade sertaneja onde tudo se passa representa um Brasil tradiciona­l, com aparente igualdade racial e ligado às suas raízes, que corre o risco de sucumbir diante do imperialis­mo tanto dos que falam outra língua quanto dos que vêm do Sul do país, entreguist­as e presunçoso­s.

O cangaço, evocado em Lunga e nas imagens de cabeças decepadas ao pé da igreja, surge como revide cultural de um povo acossado e historicam­ente menospreza­do. A dúvida é como signos tão brasileiro­s vão ecoar em plateias estrangeir­as.

Na imprensa internacio­nal, “Bacurau” colheu críticas elogiosas em veículos especializ­ados como os sites IndieWire e The Wrap. O britânico The Guardian deu ao filme 4 de 5 estrelas (mais do que para “Os Mortos Não Morrem”, de Jim Jarmusch, também exibido em Cannes) e apontou que a obra é um “trauma alucinatór­io” dotado de “clareza implacável e força”.

A revista Screen cravou que a obra faz um “comentário confrontad­or sobre o rumo que o país está tomando na era Bolsonaro”. Já a Hollywood Reporter foi menos condescend­ente e criticou o retrato que os diretores fizeram dos estrangeir­os.

“O Brasil tem uma longa tradição de crítica antiameric­ana, por razões compreensí­veis, mas essa sátira só parece terrivelme­nte desajeitad­a”, disse a publicação.

Enquanto exibe seu filme em Cannes, Kleber responde no Brasil a um processo envolvendo as contas de seu primeiro longa, “O Som ao Redor” (2012). A Secretaria Especial da Cultura acusa a produtora do cineasta de ter captado R$ 1 milhão de forma irregular num edital para filmes de baixo orçamento e exige que ele devolva, em valores atualizado­s, R$ 2,2 milhões. O diretor diz que sofre acusações injustas e ainda pode recorrer ao Tribunal de Contas da União.

Também na competição pela Palma de Ouro, o filme francês “Les Misérables”, de Ladj Ly, foi exibido nesta quarta(15) e traz à memória uma fusão entre “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”, só que ambientada nos subúrbios parisiense­s.

O título, referência à obra de Victor Hugo, escancara os vários diálogos que o longa propõe com o romance do século 19. Ambos adota mu molhar sobre os desvalidos da capital francesa esepass amem Montfermei­l,obairro periférico que hojeé dominado por imigrantes.

Parisiense de origem africana, o diretor estreante Ladj Ly cresceu no bairro e acompanhou quando o local se tornou o epicentro dos violentos protestos de 2005, que irromperam após a morte de dois jovens que fugiam da polícia.

O registro cru de quem vive nas franjas da sociedade francesa —feito por um cineasta que pertence a essas mesmas franjas— dá fôlego para “Les Misérables” se cacifar como um dos mais fortes concorrent­es à Palma de Ouro.

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Alberto Pizzoli/AFP A atriz Barbara Colen, do elenco de ‘Bacurau’, antes da exibição do filme em Cannes, nesta quarta

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