Kleber Mendonça exibe ‘Bacurau’ em Cannes e baixa tom político
Três anos após ‘Aquarius’, diretor retorna a Cannes para disputar a Palma de Ouro, não faz protesto e colhe críticas elogiosas
“Bacurau”, filme que marca o retorno do diretor Kleber Mendonça Filho à disputa pela Palma de Ouro, é um western —ou melhor, um “nordestern”— que presta homenagem ao cangaço e mostra um Brasil distópico, com rixa acirrada entre Norte e Sul, e armado até o talo. Não faltará quem veja aí ecos do país sob o governo Bolsonaro, ainda que o projeto date de 2009.
A produção, que o pernambucano dirigiu em parceria com o conterrâneo Juliano Dornelles, estreou no Festival de Cannes nesta quarta (15).
Desta vez, no entanto, sem protesto no tapete vermelho, como ocorreu três anos atrás com o ruidoso ato anti-impeachment que precedeu a estreia de “Aquarius” no evento. A atriz Sonia Braga, que havia marcado presença naquele ano e que também está no elenco da nova produção, tampouco compareceu. Teve compromissos em Nova York.
O novo longa representa uma inflexão na obra dos dois diretores, que até então ambientavam suas tramas no Recife e voltavam suas lentes para as distorções da vida urbana brasileira. Agora deslocam a ação para uma cidadezinha fictícia no sertão e deixam de lado o drama social para abraçar de vez as convenções do chamado cinema de gênero.
Bacurau, nome de um pássaro noturno e dos ônibus do último horário na capital pernambucana, é o vilarejo isolado onde a trama se passa. Após a morte de Carmelita (Lia de Itamaracá), nonagenária que é uma espécie de matriarca local, os habitantes do povoado, entre eles Domingas (Sonia Braga), se dão conta de que o lugar sumiu do mapa. É mais um problema, que se soma ao desabastecimento e ao descaso de um prefeito corrupto.
A nova ameaça tem a ver com os planos de agentes estrangeiros apoiados por dois subservientes do Sudeste (Karine Teles e Antonio Saboia). A esperança da cidade reside no fora da lei Lunga (Silvero Pereira), que vive proscrito numa espécie de fortaleza, e na união de seus habitantes.
De tom mais cômico que os longas pregressos de Kleber, “Bacurau” é também mais hermético que “O Som ao Redor” e “Aquarius”. O cineasta parece ter escolhido trocar um cinema repleto de mensagens diretas, muitas vezes expressas sem rodeios na boca dos personagens, por um outro com referências mais alegóricas.
Ainda assim, é um filme de tese. A cidade sertaneja onde tudo se passa representa um Brasil tradicional, com aparente igualdade racial e ligado às suas raízes, que corre o risco de sucumbir diante do imperialismo tanto dos que falam outra língua quanto dos que vêm do Sul do país, entreguistas e presunçosos.
O cangaço, evocado em Lunga e nas imagens de cabeças decepadas ao pé da igreja, surge como revide cultural de um povo acossado e historicamente menosprezado. A dúvida é como signos tão brasileiros vão ecoar em plateias estrangeiras.
Na imprensa internacional, “Bacurau” colheu críticas elogiosas em veículos especializados como os sites IndieWire e The Wrap. O britânico The Guardian deu ao filme 4 de 5 estrelas (mais do que para “Os Mortos Não Morrem”, de Jim Jarmusch, também exibido em Cannes) e apontou que a obra é um “trauma alucinatório” dotado de “clareza implacável e força”.
A revista Screen cravou que a obra faz um “comentário confrontador sobre o rumo que o país está tomando na era Bolsonaro”. Já a Hollywood Reporter foi menos condescendente e criticou o retrato que os diretores fizeram dos estrangeiros.
“O Brasil tem uma longa tradição de crítica antiamericana, por razões compreensíveis, mas essa sátira só parece terrivelmente desajeitada”, disse a publicação.
Enquanto exibe seu filme em Cannes, Kleber responde no Brasil a um processo envolvendo as contas de seu primeiro longa, “O Som ao Redor” (2012). A Secretaria Especial da Cultura acusa a produtora do cineasta de ter captado R$ 1 milhão de forma irregular num edital para filmes de baixo orçamento e exige que ele devolva, em valores atualizados, R$ 2,2 milhões. O diretor diz que sofre acusações injustas e ainda pode recorrer ao Tribunal de Contas da União.
Também na competição pela Palma de Ouro, o filme francês “Les Misérables”, de Ladj Ly, foi exibido nesta quarta(15) e traz à memória uma fusão entre “Tropa de Elite” e “Cidade de Deus”, só que ambientada nos subúrbios parisienses.
O título, referência à obra de Victor Hugo, escancara os vários diálogos que o longa propõe com o romance do século 19. Ambos adota mu molhar sobre os desvalidos da capital francesa esepass amem Montfermeil,obairro periférico que hojeé dominado por imigrantes.
Parisiense de origem africana, o diretor estreante Ladj Ly cresceu no bairro e acompanhou quando o local se tornou o epicentro dos violentos protestos de 2005, que irromperam após a morte de dois jovens que fugiam da polícia.
O registro cru de quem vive nas franjas da sociedade francesa —feito por um cineasta que pertence a essas mesmas franjas— dá fôlego para “Les Misérables” se cacifar como um dos mais fortes concorrentes à Palma de Ouro.