Folha de S.Paulo

Karim Aïnouz vence prêmio em mostra paralela de Cannes

‘A Vida Invisível de Eurídice Gusmão’ traz grande vitória ao cinema do Brasil

- Helen Beltrame-Linné

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” levou o prêmio de melhor filme da mostra Um Certo Olhar, em uma das maiores vitórias do cinema nacional no festival.

Há pelo menos uma cena em “A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” que não poderia ter sido dirigida por ninguém além de Karim Aïnouz. A noite de núpcias da personagem do título é uma sinfonia visual do desencontr­o de corpos —e também de almas— que se tornou familiar para quem já assistiu a outros filmes do diretor.

Exibido no Festival de Cannes, o filme levou nesta sexta (24) o prêmio de melhor filme da mostra Um Certo Olhar, em uma das maiores vitórias do cinema nacional nas 72 edições da principal mostra de cinema do mundo.

Ao registrar personagen­s que parecem tentar escapar do desconfort­o de suas próprias peles, Aïnouz construiu uma filmografi­a especialme­nte interessad­a no desejo de um lugar novo, na busca por um jeito de viver diferente daquele que foi designado.

Assim foi com o vulcânico Madame Satã no filme homônimo, a errante Violeta de “Abismo Prateado” e o fugidio Donato de “Praia do Futuro”, e assim será com as irmãs Gusmão: mulheres cujas trajetória­s são constrangi­das pelas imposições masculinas e sociais do seu tempo.

E para contar a história de Eurídice (Carol Duarte) e Guida (Julia Stockler), personagen­s principais do romance de Martha Batalha que embasa o filme, Aïnouz se vale da estrutura do melodrama e de uma hábil fotografia que respeita a vocação do diretor para o não realismo.

Hélène Louvart (que traz no currículo filmes icônicos como “Pina”, de Wim Wenders, “As Praias de Agnès”, de Agnès Varda, e “Lazzaro Felice”, de Alice Rohwacher) é possivelme­nte a mais feliz colaboraçã­o visual de Aïnouz, trazendo “um pequeno toque de vulgaridad­e visual”, nas palavras da própria diretora de fotografia.

Outras parcerias que se revelam bem-sucedidas são a edição de Heike Parplies (“Toni Erdmann”) e o roteiro de Murilo Hauser, que conseguem tecer uma bela costura.

É, aliás, esse bem-sucedido movimento dramático que permite ao espectador superar eventuais antipatias nascidas nas pouco convincent­es cenas iniciais em que as protagonis­tas interagem. Curiosamen­te, o laço afetivo entre as irmãs não aparece quando as duas estão em cena, mas sim pela presença invisível de cada uma na vida da outra.

No mais, qualquer fragilidad­e do início é compensada pela força magistral das sequências finais protagoniz­adas por Fernanda Montenegro. A atriz de quase 90 anos consegue transmitir, em poucos minutos, uma carga emocional altamente paradoxal: de um lado, toda uma vida de resignação e sublimação de desejos, e, de outro, a experiênci­a de vivenciar, tardiament­e, a vida ignorada de sua irmã.

“A Vida Invisível de Eurídice Gusmão” é um filme emotivo, pulsante e sombrio sobre duas irmãs —e tantas outras mulheres— penalizada­s por uma cultura que as impediu de escolher o próprio destino.

Com o prêmio Um Certo Olhar, que existe desde 1978, Aïnouz se soma a outros laureados do cinema brasileiro nas 72ediçõesd­ofestival.Em1962, o país recebeu a Palma de Ourocom“OPagadorde­Promessas” e, em 1969, Glauber Rocha venceu como melhor diretor por “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”.

Também já foram premiadas as atriz Fernanda Torres, em 1986, e Sandra Corveloni, em 2008.

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Alberto Pizzoli/AFP O diretor cearense e as atrizes do filme, Carol Duarte e Julia Stockler
 ?? Bruno Machado/Divulgação ?? Carol Duarte em cena de ‘A Vida Invisível de Eurídice Gusmão’, premiado em Cannes
Bruno Machado/Divulgação Carol Duarte em cena de ‘A Vida Invisível de Eurídice Gusmão’, premiado em Cannes

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