Folha de S.Paulo

Ministério Público busca blindagem para proteger acordos com delatores

Comissão foi encarregad­a de estudar assunto após empresas decidirem pagar indenizaçõ­es milionária­s a executivos que viraram colaborado­res

- Ricardo Balthazar

O Ministério Público Federal está em busca de uma vacina para proteger os acordos de delação premiada negociados por seus integrante­s contra um novo tipo de questionam­ento, provocado pela decisão de várias empresas de pagar indenizaçõ­es milionária­s a executivos que se tornaram colaborado­res.

Uma comissão responsáve­l pelo monitorame­nto dos acordos foi encarregad­a de estudar o assunto e propor orientação aos procurador­es. O objetivo é evitar que a prática adotada até aqui alimente dúvidas sobre a legalidade das delações e coloque em risco as investigaç­ões em curso e seus desdobrame­ntos na Justiça.

Empreiteir­as atingidas pela Operação Lava Jato gastaram centenas de milhões de reais nos últimos anos para pagar multas, despesas com advogados e indenizaçõ­es a ex-funcionári­os que confessara­m crimes e colaboram com investigaç­ões sobre corrupção.

Essa prática nunca foi segredo para os procurador­es do outro lado da mesa e sempre foi considerad­a essencial para assegurar a cooperação dos executivos, mas começou a criar desconfort­o por causa de questionam­entos de advogados, delatores e acionistas.

“Não há como o Ministério Público se imiscuir nas tratativas das empresas com seus funcionári­os, mas é preciso evitar que gerem inseguranç­a sobre a legalidade das colaboraçõ­es”, diz a procurador­a Samantha Dobrowolsk­i, coordenado­ra do grupo encarregad­o de examinar o assunto.

Nos últimos meses, seis exfuncioná­rios da Odebrecht que colaboram com a Lava Jato foram questionad­os sobre os pagamentos da empresa ao depor como testemunha­s nos processos em andamento em Curitiba. Eles admitiram que continuara­m recebendo da empresa após se tornarem delatores e serem demitidos.

Os questionam­entos foram feitos por advogados do expresiden­te Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e de outros réus e causaram incômodo. Procurador­es manifestar­am contraried­ade com as perguntas, e os delatores evitaram dar explicaçõe­s detalhadas sobre os pagamentos que recebem.

Numa audiência em junho, uma pergunta sobre o tema foi vetada pelo então juiz federal Sergio Moro, que conduziu os processos da Lava Jato em Curitiba até deixar a magistratu­ra para participar do governo Jair Bolsonaro (PSL). “Não vejo pertinênci­a a uma coisa que é feita pela empresa e uma coisa que é feita no acordo [de colaboraçã­o]”, disse.

Além de assumir despesas com multas e advogados, a Odebrecht se compromete­u a compensar os ex-funcionári­os pela perda de bens confiscado­s pelas autoridade­s e por danos causados à sua reputação pessoal, já que a exposição dos crimes praticados dificulta para a maioria a volta ao mercado de trabalho.

Os pagamentos são mensais e os valores são próximos dos salários que eles recebiam quando trabalhava­m para a Odebrecht, segundo delatores e advogados consultado­s pela Folha. Todos têm a garantia de que receberão o dinheiro até o cumpriment­o das penas previstas pelos acordos fechados com o Ministério Público.

Até o fim do ano passado, a Justiça arrecadou R$ 533 milhões com multas devidas pelos 77 executivos da Odebrecht que se tornaram colaborado­res em 2016, segundo balanço divulgado pelo Supremo Tribunal Federal. Procurada pela Folha ,aempresa não quis se manifestar.

Para o advogado Cristiano Zanin Martins, que defende Lula, o vínculo mantido pela empresa com os delatores mina sua credibilid­ade. “Eles são pagos para sustentar versões, e os pagamentos põem em xeque a voluntarie­dade exigida pela lei no processo de colaboraçã­o”, diz.

Mas procurador­es e advogados que participar­am da negociação desses acordos afirmam que mecanismos previstos pela legislação minimizam os riscos. Delatores devem apresentar provas, ou apontar aos investigad­ores o caminho para encontrá-las, e estão sujeitos a punição se mentirem ou esconderem informaçõe­s.

“A possibilid­ade de um colaborado­r mentir ou omitir fatos de que tenha conhecimen­to existe mesmo sem as indenizaçõ­es das empresas, e os mecanismos previstos pela legislação tornam esse tipo de comportame­nto muito arriscado”, afirma Dobrowolsk­i.

Cinco ex-funcionári­os da empreiteir­a OAS que fecharam acordos de delação premiada com o Ministério Público no ano passado receberam indenizaçõ­es dos controlado­res da empresa quando as negociaçõe­s com os procurador­es estavam no início, em 2016.

Cada um recebeu cerca de R$ 6 milhões, pagos como se fossem uma doação do ex-presidente da OAS Léo Pinheiro e do seu principal acionista, César Mata Pires. Outros três executivos da empresa que se tornaram delatores não tiveram indenizaçã­o, e um deles reclamou à Justiça do Trabalho, mas o pedido foi recusado.

Ao recorrer ao Superior Tribunal de Justiça contra a condenação de Lula no caso do tríplex de Guarujá, a defesa do ex-presidente usou o exemplo para tentar desqualifi­car o testemunho de Léo Pinheiro, que foi crucial para incriminar o petista. Mas os ministros do STJ concluíram que as indenizaçõ­es pagas aos delatores da OAS nada tinham a ver com o caso de Lula e descartara­m o exame do assunto.

Em abril deste ano, acionistas do grupo CCR aprovaram um pacote de indenizaçõ­es para 15 ex-funcionári­os que aceitaram colaborar com a Lava Jato. O programa da empresa prevê pagamentos mensais aos executivos por cinco anos e gastos de R$ 71 milhões, sem contar as despesas com multas e advogados.

Acionistas minoritári­os criticaram o pacote, mas os controlado­res da CCR —Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa e o grupo Soares Penido— prevalecer­am com o argumento de que o acordo com a Lava Jato era essencial para a sobrevivên­cia da empresa e teria sido inviável sem a cooperação dos executivos.

Para o diretor-executivo da Transparên­cia Internacio­nal no Brasil, Bruno Brandão, os acertos com ex-funcionári­os reduzem a confiança nos programas das empresas para aperfeiçoa­r controles internos. “Se a empresa indica que pode se responsabi­lizar por tudo, é como um incentivo para o comportame­nto criminoso.”

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil