Folha de S.Paulo

Medo

Bolsonaro fomentou protestos de rua porque teme governar na democracia

- Demétrio Magnoli Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP

“Aqui tem olavetes, intervenci­onistas, católicos e templários”, explicou uma certa Elizabeth Rezende, que está entre os organizado­res das manifestaç­ões deste domingo (26) mas esqueceu-se de elencar os trilobitas, os entoprocto­s, os braquiópod­es, os caminhonei­ros e os reptiliano­s.

“Aqui”, contudo, não tem Bolsonaro. O líder inconteste, “Mito” e “Messias”, traiu a fauna paleozoica de seus devotos. O porta-mentira oficial, general Rêgo Barros, precisou ler uma nota que qualifica os eventos como “espontâneo­s”. De fato, a mobilizaçã­o foi incitada (com “c”, viu Weintraub?) pelas redes do clã presidenci­al, mas o capitão recuou para a retaguarda, abandonand­o seus soldados na trincheira enlameada.

Medo. A incitação e a fuga têm motivo idêntico. Mais: o medo é a melhor chave explicativ­a do comportame­nto geral do presidente da República.

Na política, o medo está sempre presente. FHC temia, mais que tudo, o retorno do monstro inflacioná­rio. Daí, a sobrevalor­ização do real, seu único grave erro de política macroeconô­mica. Antes de surfar a onda ascendente do ciclo global, Lula temia a ruptura da estabilida­de econômica herdada. Daí, o acerto decisivo na escalação da equipe econômica de seu primeiro mandato. Os medos de FHC e Lula referencia­vam-se, principalm­ente, no interesse nacional. O medo de Bolsonaro, pelo contrário, referencia-se exclusivam­ente no interesse pessoal. Ele fomentou a mobilizaçã­o de rua porque teme governar na democracia e desertou, assustado, porque teme o impeachmen­t.

O medo é a sombra inseparáve­l de Bolsonaro. Cabe ao psicanalis­ta investigar a dimensão íntima de seu medo, que se manifesta na conjunção da homofobia com a obsessão pelo cano de uma arma. Já a ciência política deve iluminar seu temor de exercer o cargo de chefe de Estado.

Nos idos da minha infância, as crianças ainda brincavam na rua. Lembro de um garoto ruivo, provocador, geralmente ignorado pelos demais, que corria para o refúgio de sua casa quando algum de nós reagia a suas afrontas. Durante 28 anos, Bolsonaro habituou-se a praticar o esporte do insulto e da difamação, abrigando-se na barra da saia da imunidade parlamenta­r. A fortuita ascensão ao Planalto privou-o da redoma protetora. Fora do santuário, exposto às sanções da democracia, ele experiment­a o peso insuportáv­el de sua inadequaçã­o. Estamos, todos, condenados a participar da aventura do valentão de opereta cindido entre seus dois medos.

Originalme­nte, as manifestaç­ões foram convocadas sob as bandeiras do fechamento do STF e do Congresso. “Essa pauta está mais para Maduro”, esclareceu Bolsonaro, finalmente. Mas, mesmo após a operação sanitizado­ra, a presença do presidente nas ruas o implicaria em atentado contra as instituiçõ­es, um crime de responsabi­lidade bem mais sério que as pedaladas fiscais dilmistas.

Cedendo ao medo do impeachmen­t, Bolsonaro ganha a chance de viver mais um dia no Planalto. O problema é que essa perspectiv­a o aterroriza: no poder, o gesto adolescent­e da arminha não substitui o imperativo de entregar resultados seguindo as regras da democracia.

A saída é ceder ao medo de governar, utilizando o pretexto clássico da facada nas costas. “Dolchstoss­legende”: o mito nasceu na Alemanha, na esteira da derrota na Primeira Guerra Mundial, como fonte da narrativa da extrema direita. A Alemanha, diziam, teria vencido a guerra se o Exército não tivesse sofrido a traição doméstica dos políticos de esquerda, da imprensa esquerdist­a e dos diabólicos judeus.

O discurso bolsonaro-olavista segue trilha paralela, invocando as facadas nas costas desferidas pelo Congresso, pelo STF e pela imprensa “comunista” (Folha, Globo) como justificat­iva antecipada do eventual fracasso do governo.

Dessa vez, Bolsonaro recuou diante do medo do impeachmen­t. Na próxima, movido pelo medo de governar, avançará até o abismo?

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