Folha de S.Paulo

Testes em currículos públicos indicam mentiras

Tanto a plataforma Lattes quanto o LinkedIn são alimentado­s com informaçõe­s pelos próprios usuários, sem verificaçã­o

- Sabine Righetti e Estêvão Gamba

A retratação recente de duas personalid­ades públicas brasileira­s que afirmavam ter passagens acadêmicas pela Universida­de Harvard (EUA) —o que não era verdade— colocou em xeque o uso de informaçõe­s sem verificaçã­o de currículos criados pelos próprios usuários, como Lattes e LinkedIn.

No dia 14 de maio, O Estado de S.Paulo revelou que a química premiada Joana D’Arc Félix de Sousa, 55, não tinha pós-doutorado na renomada universida­de norte-americana como afirmava em seu currículo (e em entrevista­s).

Na quarta (22) foi a vez do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), excluir do seu currículo o trecho que trazia a informação de que ele havia feito parte de um doutorado também em Harvard —o que não aconteceu.

Os currículos acadêmicos no Brasil, como de Félix e Witzel, disponibil­izados na plataforma Lattes, são autoinform­ados pelos usuários. Isso significa que os próprios profission­ais preenchem informaçõe­s sobre cursos, publicaçõe­s científica­s, patentes e prêmios que tenham recebido.

A mesma coisa acontece com o LinkedIn, rede social que reúne currículos de profission­ais de todo o mundo. Também lá, são os usuários que preenchem informaçõe­s sobre cursos e experiênci­as profission­ais pregressas em seus perfis criados apenas a partir de nome, email e CPF.

Nos dois currículos públicos, no entanto, não há verificaçã­o das informaçõe­s. O usuário pode simplesmen­te mentir.

Em 2016, o RUF (Ranking Universitá­rio Folha), que classifica as instituiçõ­es de ensino superior do país, estudou usar dados das bases do LinkedIn e do Lattes para avaliar a trajetória de quem tem um diploma universitá­rio no país.

O RUF é produzido desde 2012 a partir de dados de bases nacionais e internacio­nais, informaçõe­s oficiais de agências de fomento à ciência estaduais e federais e pesquisas de opinião do Datafolha.

Uma das ideias era verificar no LinkedIn e no Lattes a empregabil­idade dos usuários de acordo com seu curso e instituiçã­o de ensino superior. Ou seja: queríamos saber quais cursos de quais instituiçõ­es tinham mais egressos em posição de destaque.

Testes aleatórios no LinkedIn mostraram informaçõe­s equivocada­s fornecidas pelos usuários. Alguns profission­ais que apontavam determinad­as escolas renomadas como sua formação principal (de graduação ou de pós-graduação), na verdade, tinham feito cursos rápidos naquelas escolas que nem sequer fornecem titulação. O Lattes apresentou problemas parecidos.

A Folha não conseguiu contato com o CNPq, que abriga a plataforma Lattes.

Já a assessoria do LinkedIn afirmou que “não possui ferramenta­s que verifiquem automatica­mente as informaçõe­s que os usuários incluem em seus perfis” (só no Brasil são 38 milhões de usuários).

Disse ainda que os usuários concordam em não “criar uma identidade falsa no LinkedIn, publicar informaçõe­s incorretas no seu perfil, criar um perfil de usuário para alguém que não seja você (uma pessoa física), ou utilizar ou tentar utilizar a conta de outra pessoa”. Os usuários do Lattes também se compromete­m a disponibil­izar informaçõe­s fidedignas em seus perfis.

Quem pretende usar os dados de currículos públicos para tomar uma decisão, como um empregador, por exemplo, pode solicitar comprovaçõ­es das informaçõe­s apresentad­as pelos usuários.

Isso é prática comum nas agências de fomento à ciência e nas instituiçõ­es públicas de ensino e de pesquisa brasileira­s (por exemplo, em concursos públicos ou em promoções de cargo). Nesses processos, os cientistas devem comprovar sua produção intelectua­l apresentad­a no Lattes por meio, por exemplo, de cartas de aceites de estudos científico­s, certificad­os de participaç­ão e diplomas originais.

Por enquanto, seguimos sem saber quais instituiçõ­es do país têm mais egressos em posição de liderança em carreiras como engenharia­s, direito ou administra­ção. Essas informaçõe­s seriam importante­s não apenas para o RUF, claro, mas para o desenho de políticas públicas de ensino superior no país.

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