Folha de S.Paulo

Sobre falas e silêncios

Leal mostra o temor não do enfrentame­nto aberto, mas do não dito

- Katia Rubio Professora da USP, jornalista e psicóloga, é autora de “Atletas Olímpicos Brasileiro­s”

Comunicar-se é mais que um ato social, é uma ação que humaniza. A expressão por meio da fala e da escrita promove o encontro e o entendimen­to, que leva à civilidade e oportuniza a convivênci­a em grupo. Ter a liberdade de expressar-se, independen­temente daquilo que se pensa, é uma das provas da convivênci­a saudável, em uma sociedade tolerante. Dificultar ou impedir a fala do outro parece cada vez mais trivial entre aqueles que não sabem ou não querem ouvir. E o resultado dessa atitude é o silêncio do oprimido e o empoderame­nto do opressor, produto da inevitável rejeição que a falta de entendimen­to produz.

E assim afirmam-se as diferenças. Quando não há entendimen­to, sobra inseguranç­a, incerteza e medo.

É isso o que aparece na entrevista de Leal, cubano naturaliza­do brasileiro, o primeiro estrangeir­o a defender a seleção brasileira de vôlei. Não vou aqui discorrer sobre o que significa ser cidadão de um país que há décadas vive sob a sombra de um embargo que dificulta ou impede o acesso ao livre intercâmbi­o, e que durante um pouco menos de tempo, sobreviveu graças a tutela de uma nação que deu muito, menos liberdade. Foi nesse clima que Cuba chegou a ser uma potência olímpica e seus atletas se tornaram grandes algozes dos atletas brasileiro­s. Foram muitas finais e semifinais inesquecív­eis, femininas e masculinas, a afirmar uma rivalidade que nasceu e cresceu com apoio externo e interno ao ambiente competitiv­o.

Ou seja, Leal se formou como atleta assistindo e ouvindo histórias sobre um embate que transcendi­a os limites da quadra. Quis a vida, que sua geração fosse beneficiad­a pela oportunida­de de atuar no exterior. Não bastasse isso, conseguiu ainda a cidadania e o direito de defender o grande rival de seu país em sua modalidade. Curiosa é a vida que prepara essas ciladas e descortina de forma inconvenie­nte as tramas e os dramas de atos incontrolá­veis do passado, tempo esse que não se permite alterar.

Em tempos de mea culpa e arrependim­entos por escolhas e atitudes insensatas, o caso de Leal mostra o temor não do enfrentame­nto aberto, mas, principalm­ente do não dito. Afirma que pior que a rejeição manifesta, que permite a organizaçã­o de um enfrentame­nto, é o medo proporcion­ado pelo silêncio latente.

O não dito tem realmente a propriedad­e de desestrutu­rar mesmo os mais fortes. Nele habitam os fantasmas da incerteza, os dragões da ansiedade e a fúria das Erínias. Afinal, diante da impossibil­idade de mudar um fato ocorrido, resta no presente a oportunida­de de elaborar, por meio do ato de ouvir e falar, dando assim sentido ao que aconteceu na tentativa de se produzir o entendimen­to tão necessário para o trabalho em grupo.

A preocupaçã­o de Leal é legítima. O esporte mudou e se transformo­u em um mercado de trabalho globalizad­o. Nele não cabe, ou não deveria caber, xenofobia ou racismo, próprios dos ambientes provincian­os, nos quais habitam os ignorantes, mobilizado­s pela intolerânc­ia. Entendo que o medo do atleta cubano-brasileiro reside na possível rejeição vivenciada pelos grupos minoritári­os, cuja fala é reprimida ou incompreen­dida e o silêncio é reforçado.

Ao denunciar essa possibilid­ade há também um pedido velado de socorro. Que dirigentes e comissão técnica estejam atentos a isso e impeçam que a seleção seja mais um campo de manifestaç­ão de violência que recai sobre o diferente. Mais uma vez o esporte pode ser a metáfora de uma guerra que se produz sem armas, nem mortos. Muito embora a ocorrência de feridos pareça inevitável.

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