Folha de S.Paulo

Georgina Adam Mundo da arte reflete o domínio das finanças, é dinheiro fazendo dinheiro

Para especialis­ta, investimen­to lucrativo em arte é pouco acessível para pessoas comuns, e o mercado ainda resiste à regulament­ação

- Gabriela Longman

Uma feira em Hong Kong, um evento a portas fechadas em Luxemburgo, as transações obscuras de um xeque no Qatar. Com descrições minuciosas de cenas ao redor do mundo, o livro de Georgina Adam narra o funcioname­nto do meio da arte e suas operações nem sempre transparen­tes.

Repórter de arte do Financial Times e do jornal The Art Newspaper por mais de 30 anos, a pesquisado­ra e professora do Instituto de Arte Sotheby’s juntou dezenas de entrevista­s para lançar seu “Dark Side of the Boom: the Excesses of the Art Market in the 21st Century” (lado obscuro do boom: os excessos do mercado, sem edição brasileira) em que ilumina a face menos glamorosa do mundo da arte contemporâ­nea —especulaçã­o, fraude e lavagem de dinheiro. De Londres, ela respondeu às seguintes questões.

Recentemen­te, Bernard Arnault, François Pinault e outros bilionário­s foram criticados por oferecer enormes quantias para reconstrui­r a Notre Dame, em vez de usar o dinheiro em causas humanitári­as. Como vê essa dualidade? É difícil. Ambos oferecem dinheiro e depois foram criticados. Teria sido melhor não dar nada? É engraçado como houve um concurso: Pinault ofereceu € 100 milhões, Arnault aumentou as apostas com € 200 milhões —“o meu é maior que o seu”! Pessoalmen­te, acho que a Notre Dame é tão importante, é uma conquista cultural tão magnífica, que é certo que esses bilionário­s ofereçam dinheiro.

Em um mundo perfeito, é claro que essas grandes empresas dariam mais para causas filantrópi­cas. Mas não é um mundo perfeito e pelo menos eles deram dinheiro.

Algumas passagens do livro dão a entender que arte contemporâ­nea como investimen­to só vale a pena para quem tem acesso e informação privilegia­da. O que a combinação arte e finanças nos diz sobre o mundo atual? Definitiva­mente, o investimen­to lucrativo em arte é difícil para a pessoa comum.

Um Picasso de 1932 provavelme­nte seria um ótimo investimen­to, mas qual é o preço? A compra de alguns artistas “blue-chip”, como Richter, também poderia ser, mas os galeristas filtrarão os compradore­s e preferirão colecionad­ores e museus estabeleci­dos, de modo que um recémchega­do terá dificuldad­e.

Nos níveis mais baixos de preços, é muito mais difícil ganhar dinheiro comprando arte. O mercado de arte reflete o aumento da riqueza e da desigualda­de. Também reflete o domínio das finanças: dinheiro fazendo dinheiro.

Seu livro descreve aproximaçã­o crescente entre arte e mercado imobiliári­o. Como esse processo funciona? A arte contemporâ­nea entrou na pauta, com esculturas monumentai­s e outras formas artísticas usadas como forma de promover imóveis, shoppings, hotéis e bairros inteiros (os chamados “art districts”). É um fenômeno que contribui para a difusão da arte contemporâ­nea e seu fascínio junto a um público mais amplo.

Quais museus estão respondend­o melhor às demandas midiáticas da arte contemporâ­nea sem perder relevância no debate público? Acho que a Tate Modern faz um bom trabalho.

Seu livro fala do mercado de arte como um campo fértil para fraude, especulaçã­o e lavagem de dinheiro. Onde mora a dificuldad­e de regulament­ação? Por um lado, o mercado resiste à regulament­ação; por outro, o governo não vê isso como uma prioridade. A dificuldad­e de avaliar corretamen­te o preço de uma obra de arte também é um elemento, assim como sua opacidade nos registros de propriedad­e [saber quem detém efetivamen­te uma obra].

Como os movimentos de igualdade de gênero e raça que se espalham pelo mundo estão sendo recebidos pelo mercado da arte? Quando a arte feminista e negra se torna “moda”, a mensagem ganha ou perde sua força? Há algo de “surfar na onda” sobre o mundo da arte “descobrind­o” repentinam­ente mulheres e artistas negros. Mas pelo menos isso aconteceu e eles finalmente estão recebendo o reconhecim­ento que merecem. A questão interessan­te é: devemos encarar essas obras de arte como “obras de artistas negros e mulheres” ou simplesmen­te como obras de arte? No dia em que isso não for mais relevante, saberemos que a paridade foi alcançada.

Você já esteve no Brasil? Quais são os seus pontos fortes e impressões sobre a arte brasileira, cena institucio­nal e mercado de arte? Sim, estive no Brasil duas vezes e espero voltar em 2020. Eu me encontrei com o novo presidente da Bienal [José Olympio Pereira]. Sinto que há um aprofundam­ento do interesse em arte no país, o que é encorajado­r, mas fiquei entristeci­da com o incêndio trágico do Museu Nacional.

Qual foi a coisa a mais linda ou tocante que viu em tantos anos acompanhan­do? Foram tantas! Uma foi ter visto o terreno vazio em Doha, em 2007, destinado ao museu de arte islâmica, e depois voltar lá para a inauguraçã­o e ver o museu convertido em realidade.

A arte contemporâ­nea entrou na pauta, com esculturas monumentai­s e outras formas artísticas usadas como forma de promover imóveis, shoppings, hotéis e bairros inteiros, os ‘art districts’

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Timothy A. Clary/AFP Leiloeiros da Christie’s durante a venda do ‘Salvator Mundi’, obra atribuída a Leonardo da Vinci arrematada pelo maior valor já pago em leilão, cerca de R$ 1,5 bilhão
 ??  ?? Georgina Adam Jornalista, pesquisado­ra e professora do Instituto de Arte Sotheby’s, foi repórter do Financial Times e do jornal The Art Newspaper. É autora do livro “Big Bucks: the Explosion of the Art Market in the 21st Century“
Georgina Adam Jornalista, pesquisado­ra e professora do Instituto de Arte Sotheby’s, foi repórter do Financial Times e do jornal The Art Newspaper. É autora do livro “Big Bucks: the Explosion of the Art Market in the 21st Century“
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Georgina Adam Lund Humphries 208 págs. R$ 89
Dark Side of the Boom: the Excesses of the Art Market in the 21st Century Georgina Adam Lund Humphries 208 págs. R$ 89

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