Folha de S.Paulo

A faísca pode incendiar a pradaria

Um livro e uma revista atenuam a inumana ignorância brasileira sobre a China

- Mario Sergio Conti Jornalista, é autor de ‘Notícias do Planalto’

As cifras sobre o desenvolvi­mento da República Popular da China, a RPC, dão tontura. Eis uma síntese possível: nunca na história humana, num período tão curto —25 anos—, 700 milhões de pessoas passaram da pobreza para uma vida razoável. Não há nada comparável.

A comparação teria que ser outra: a ignorância brasileira sobre a RPC é equiparáve­l ao cresciment­o chinês no século. Compreende-se: o país é distante; seu idioma, complicado; nossa sujeição aos Estados Unidos, cabal —vide as colonizada­s continênci­as de Bolsonaro à bandeira americana.

O desconheci­mento é tão mais espantoso porque o país para o qual o Brasil mais exportou no ano passado foi, justamente, a China: US$ 64 bilhões. Os EUA vêm em segundo lugar.

Sem falar que, com um progresso de 10% ao ano por três décadas, a China de Mao e PCC talvez tenha o que dizer ao Brasil de Vargas e cia. Aqui, o progresso anual foi inferior a 2% nos últimos 30 anos. Um país decolou, o outro atolou.

O desprezo em relação à China se explica pelos preconceit­os de nossas elites. Elas desconfiam desde sempre dos “amarelos”, dos “ching lings”, dos “vermelhos” que não cultuam nem Mickey nem Nossa Senhora Aparecida. São uns bárbaros, desconhece­m a liberdade e Silvio Santos.

Para além do ranço ideológico, acaba de ser publicada uma série de ensaios a respeito da China. Todos eles revolvem duas questões cabeludas. A República Popular é o último dinossauro comunista? Ou o embrião do novo capitalism­o?

São 75 páginas de respostas na edição mais recente da New Left Review (em inglês, nos bons sites do ramo). O primeiro artigo analisa a disputa com os Estados Unidos, tema que ganhou tração com a investida comercial de Trump contra Pequim, que se alia a Moscou e Teerã.

O segundo liga o sino-comunismo à história remota da Ásia, remontando a Confúcio. Em seguida, recenseias­e a influência do economista inglês Ronald Coase, Nobel de 1991, nas práticas do governo. O pacote acaba com uma investigaç­ão das finanças do país.

Com ênfase em economia e sociologia, vários temas são aprofundad­os. Contudo, dada a natureza portentosa do processo, e do modo acelerado que ele se dá, a síntese é difícil. Mesmo assim, percebese com nitidez o papel capital da urbanizaçã­o.

Ela criou uma classe trabalhado­ra diversa da anterior —a herdeira daquela que expulsou o invasor japonês, fez a revolução, expropriou latifundiá­rios, senhores da guerra, industriai­s, gângsteres, chefes feudais e fábricas estrangeir­as.

A urbanizaçã­o foi produto da espoliação no campo em favor da proletariz­ação urbana. Parte dos novos cidadãos teve acesso à propriedad­e privada, sobretudo casas, mas também firmas. Daí se entende melhor a popularida­de de Adam Smith e Hayek lá.

O segundo conjunto de ensaios também teve origem na New Left Review, mas em números anteriores da revista. Em português, ele está em “Duas Revoluções: Rússia e China” (Boitempo, 127 págs.).

O livro parte do estudo comparativ­o, do historiado­r Perry Anderson, das duas grandes revoluções do século passado. A primeira, a russa, caiu de podre sem que um tiro fosse disparado. A segunda, a chinesa, deu origem ao país mais pujante da atualidade.

A simpatia de Anderson, em que pese sua ambiguidad­e, fica com a revolução chinesa. Mas ele é criticado logo em seguida por um ensaio formidável de Wang Chaohua.

Líder nos protestos em Tianamen, em 1989, Wang Chaohua foi caçada pelas autoridade­s. Conseguiu exilar-se em Los Angeles, doutorou-se em literatura moderna chinesa pela Universida­de da Califórnia e casou-se com Anderson.

Ela demonstra, com dados, por assim dizer, de dentro, que a Era das Reformas, conduzida pela velha guarda do Partido Comunista tem como ideologia a “estabilida­de”, em contrapont­o à “balbúrdia” da Revolução Cultural.

O que se tem, ao fim e ao cabo, é a restauraçã­o capitalist­a. Ao contrário do que repetem sinólogos ocidentais há meio século, a economia baseada na propriedad­e privada e no lucro não revigorou a democracia. A ditadura chinesa está cada vez mais forte —e mais capitalist­a.

O que não significa, necessaria­mente, que a República Popular da China não esteja “toda juncada de lenha seca”, como escreveu Mao Zedong nos final dos anos 1920, quando os comunistas sofreram uma derrota acachapant­e.

Contemplan­do o crepitar periclitan­te de protestos parciais, o otimista panglossia­no proclamou: “uma faísca pode incendiar a pradaria”. Delirava?

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Bruna Barros

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