Folha de S.Paulo

Militares soltos

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É difícil encontrar justificat­iva para a ação da patrulha do Exército que matou o músico Evaldo Rosa dos Santos, em abril, no Rio de Janeiro.

Segundo o Ministério Público Militar, foram disparados 257 tiros de fuzil e pistola durante a ação, dos quais 62 acertaram o automóvel em que estavam a vítima, seu sogro, a mulher, o filho de sete anos de idade e uma amiga. Também morreu o catador Luciano Macedo, que tentou auxiliar a família.

Os militares agiram com flagrante despreparo, desconside­raram os protocolos de abordagem e assumiram que poderiam atirar para matar sem que sofressem ameaça —e, pior, sem que tivessem certeza de quem se encontrava no carro.

Apenas uma lógica belicista poderia considerar natural que assim se procedesse caso os ocupantes fossem traficante­s ou criminosos de outra natureza, ignorando-se por completo a possibilid­ade de rendê-los e prendê-los.

Na quinta-feira (23), o Superior Tribunal Militar decidiu pela concessão de habeas corpus aos nove detidos acusados pelo crime.

Dez ministros deliberara­m nesse sentido; registrara­m-se apenas um voto pela permanênci­a da prisão preventiva e outros três favoráveis à libertação acompanhad­a de medidas cautelares.

O ministro José Barroso Filho propôs o recolhimen­to domiciliar dos acusados durante a noite, a proibição de porte de arma em atividades externas e o veto à participaç­ão em ações de Garantia da Lei e da Ordem —aquelas nas quais militares exercem papel de polícia.

Há sem dúvida argumentos jurídicos para embasar o habeas corpus, embora possam pairar dúvidas sobre a segurança dos sobreviven­tes e de testemunha­s que deverão ser ouvidos pela Justiça.

É natural, diante da brutalidad­e da ação e de casos de arbítrio policial e militar observados no dia a dia do país, que tais pessoas sintam-se intimidada­s. Cabe ao Estado garantir que não sejam vítimas de agressões e ameaças.

Não deixa de despertar apreensão o fato de que os autores dos disparos estejam sendo julgados pela Justiça Militar. Crimes dolosos cometidos por militares contra a vida de civis passaram a ser da alçada da Justiça comum em 1996, mas tal prescrição foi revogada em 2017 por lei sancionada pelo ex-presidente Michel Temer (MDB).

O Congresso e o mandatário procuraram, com essa providênci­a controvers­a, dar respaldo à atuação, nem sempre justificáv­el, das Forças Armadas em operações de combate ao crime. Será uma lástima se a nova regra servir para que o espírito corporativ­o prevaleça sobre o rigor da lei e a imparciali­dade que se espera dos tribunais.

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