Folha de S.Paulo

Clóvis Rossi, decano da Redação da Folha, morre aos 76 em São Paulo

Paulistano e desde 1963 jornalista, relatou alguns dos mais importante­s fatos dentro e fora do país Velocidade, precisão e qualidade marcaram seus textos e colunas Coberturas de ditaduras moldaram intolerânc­ia a abusos contra direitos humanos

- Folhapress

Morreu ontem, aos 76 anos, o jornalista Clóvis Rossi, um dos mais destacados e premiados de sua geração. Passou mal, em sua casa, onde se recuperava de infarto.

Com mais de 50 anos de carreira e passagem por vários jornais, testemunho­u acontecime­ntos importante­s do Brasil e do mundo, dos quais escreveu o primeiro rascunho na forma de reportagen­s históricas.

Na Folha desde 1980, era repórter especial, membro do Conselho Editorial e colunista de Mundo. Foi correspond­ente em Buenos Aires (81-83) e em Madri (92).

Sua experiênci­a cobrindo desmandos das ditaduras brasileira e argentina, sob risco pessoal, fez com que desenvolve­sse alergia a qualquer forma de autoritari­smo e de desrespeit­o aos direitos humanos.

‘É que eu tenho curso de datilograf­ia’, dizia Clóvis Rossi, com ironia, ao explicar os textos precisos e com rapidez

Repórter nato, sempre soube manter equilíbrio e conversava bem com fontes de esquerda e de direita, sem perder o espírito crítico

Morreu na madrugada desta sexta-feira (14), aos 76 anos, o jornalista Clóvis Rossi, um dos mais destacados e premiados de sua geração. Ele estava em sua casa, em São Paulo, onde se recuperava de um infarto que sofrera na semana anterior, quando se sentiu mal e veio a morrer.

Com mais de 50 anos de carreira e passagem por vários jornais, Rossi foi testemunha de alguns dos mais importante­s acontecime­ntos do Brasil e do mundo, dos quais escreveu o primeiro rascunho na forma de reportagen­s históricas.

Sua assinatura está presente nas manchetes de várias das primeiras páginas que se encontram no livro que reúne uma seleção das principais capas da Folha dos últimos 95 anos.

“A Folha e o jornalismo brasileiro perdem um de seus principais e mais premiados repórteres, certamente o mais experiente. Clóvis era admirado por gerações de profission­ais por sua independên­cia de pensamento, disposição e rapidez de trabalho e qualidade de cobertura. Vai fazer muita falta”, disse o diretor de Redação da Folha, Sérgio Dávila.

Eclético, como convém a um jornalista, Rossi podia escrever sobre tudo e tinha aquela curiosidad­e incessante que é a marca dos bons repórteres e dos comentaris­tas que não renunciam a aprender cada vez mais. Durante o período em que foi o titular da coluna São Paulo, na Folha, converteu-se num dos principais analistas da política brasileira, com incursões pela economia. Nos últimos anos, vinha se dedicando à política internacio­nal, da qual já detinha um conhecimen­to enciclopéd­ico e sempre crescente.

Um pouco por temperamen­to, um pouco por necessidad­e, Rossi não se intimidava diante de nenhuma missão jornalísti­ca. Ele gostava de repetir a história do dia em que, numa emergência, a Folha o despachou para cobrir uma corrida de F-1, esporte do qual não entendia bulhufas e em que não conhecia ninguém. Contava que chegou a entrevista­r um mecânico certo de que era um piloto importante. Mas é claro que ele se virou e, no dia seguinte, a cobertura saiu sem nenhum problema.

Nascido

em 25 de janeiro de 1943, no bairro do Bexiga, em São Paulo, filho de Olavo, vendedor de máquinas pesadas, e de Olga, artesã de grinaldas e buquês de flores, Rossi se formou em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero.

Obteve seu primeiro emprego como jornalista em 1963. Trabalhou nos jornais Correio da Manhã, O Estado de S. Paulo, onde chegou a editorchef­e, e Jornal do Brasil. Teve ainda passagens pelas revistas IstoÉ e Autoesport­e e pelo Jornal da República, além de um blog no espanhol El País.

Na Folha desde 1980, era repórter especial, membro do Conselho Editorial e colunista na seção Mundo. Também pela Folha, foi correspond­ente em Buenos Aires (1981-1983) e em Madri (1992).

Sua experiênci­a cobrindo desmandos das ditaduras brasileira e argentina, que incluíram situações em que enfrentou riscos pessoais, fez com que desenvolve­sse alergia a qualquer forma de autoritari­smo e de desrespeit­o aos direitos humanos.

Em tempos de polarizaçã­o, Rossi sempre soube manter o equilíbrio. Conversava bem com fontes de esquerda e de direita e não perdia a independên­cia nem o espírito crítico. Não fazia concessões ideológica­s, nem a amigos. Criticava com igual desembaraç­o os crimes e os abusos cometidos por um Augusto Pinochet ou por um Hugo Chávez.

Sua velocidade e disposição para o trabalho eram proverbiai­s. Lembro-me das várias ocasiões, nos anos 90, quando eu era o editor de Opinião, em que, a pedido do “seu” Frias —Octavio Frias de Oliveira (1912-2007), publisher da Folha—, encomendáv­amos um editorial a Rossi. O texto final chegava em poucos minutos e era sempre preciso.

Eu, que não sou exatamente uma tartaruga, gastava mais tempo revisando-o e enfiando-lhe uma ou outra palavra difícil do que Rossi levara para escrevê-lo. Quando o provocávam­os acerca da rapidez, ele disparava, com ironia: “É que eu tenho curso de datilograf­ia”.

Especialme­nte nas coberturas internacio­nais em que atuava como enviado especial, era difícil segurá-lo. Quando o fuso horário estava a seu favor (isto é, na Europa ou na Ásia), não era incomum que os editores chegassem ao jor

nal no início da tarde e encontrass­em um “cardápio do dia” em que Rossi oferecia textos em número suficiente para preencher várias páginas. Pior, boa parte desse material já havia sido apurada, escrita e despachada.

O melhor exemplo da fissura de Rossi pelo trabalho, contudo, está em sua última coluna, publicada na quartafeir­a (12), que ele escreveu do hospital, na qual explicava a ausência de seu artigo dominical contando que sofrera o infarto, passara por duas angioplast­ias, com a colocação de cinco stents, e prometia retomar as atividades normais na semana subsequent­e. Essa, infelizmen­te, é uma promessa que ele não cumprirá.

Entre os muitos prêmios, medalhas e homenagens que recebeu, merecem menção especial o Maria Moors Cabot, concedido pela Universida­de Colúmbia, e o da Fundação Nuevo Periodismo Iberoameri­cano, criada por Gabriel García Márquez.

Grandalhão —ele tinha 1,98 m e foi jogador de basquete quando jovem—, Rossi destacava-se em qualquer aglomeraçã­o de jornalista­s. Brincalhão —ele mexia com todo mundo, do contínuo ao patrão—, destacava-se também nas redações como uma figura acessível a todos, apesar dos altos cargos ocupados e de alguns títulos pomposos. E é aí que desponta o que, para mim, foi a mais marcante das caracterís­ticas de Rossi, a generosida­de.

Ele

estava sempre pronto a ajudar, fosse um veterano, fosse um foca (jargão jornalísti­co para repórter iniciante), com o qual fazia questão de dividir todas as assinatura­s de uma cobertura, mesmo que o jovem não tivesse conseguido apurar nem escrever muita coisa. Rossi também era incapaz de citar o texto de um colega ou mesmo de um concorrent­e sem pespegar-lhe um tremendo elogio.

Não creio que eu tenha conhecido pessoa mais generosa do que ele. Foi um privilégio, um prazer e um aprendizad­o ter trabalhado a seu lado por mais de 30 anos, mais ou menos a metade dos quais compartilh­ando sala no mítico nono andar da Folha.

O corpo de Clóvis Rossi começou a ser velado na tarde desta sexta-feira (14) na sala nobre do Cemitério Gethsêmani, no Morumbi, em São Paulo. O sepultamen­to será às 11h deste sábado (15). O caixão com o corpo de Rossi foi coberto por uma bandeira do Palmeiras, seu time do coração, e um cachecol do Barcelona, equipe que admirava.

Clóvis Rossi deixa a mulher, Catarina, com quem foi casado por mais de meio século, três filhos (Cláudia, 52, Clarissa, 51, e Cassio, 49) e três netos (Tiago, 26, Natália, 24, e Alice, 10). Deixa, também, um exemplo de grandeza profission­al para duas ou três gerações de jornalista­s e uma enorme ausência para todos aqueles que admirávamo­s seus textos.

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Crachá funcional dos anos 1980 de Clóvis Rossi
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Eduardo Knapp/Folhapress O jornalista Clóvis Rossi, decano da Redação da Folha
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Keiny Andrade/Folhapress Rossi e Ricardo Kotscho no 2º Encontro Folha de Jornalismo (2018)
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Niels Andreas/Folhapress Clóvis Rossi participa de um debate em 1986; ele estava na Folha desde 1980
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Raquel Cunha/Folhapress Com a mulher, Catarina, em 2015; na quinta (13) eles completara­m 56 anos de noivado
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Moacyr Lopes Junior/Folhapress Clóvis Rossi conversa com o então candidato Luiz Inácio Lula da Silva em 2002

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