Folha de S.Paulo

André Midani, produtor da MPB, morre aos 86

Empresário, morto aos 86 no Rio, bancou vários discos transgress­ores como ‘Lóki?’, ‘Gita’ e ‘Araçá Azul’

- André Barcinski

Quem diz que gravadoras sempre preferiram dinheiro a artistas nunca ouviu falar de André Midani.

O executivo, que morreu nesta quinta (13), aos 86 anos, no Rio de Janeiro, combinava um apurado tino comercial a uma paixão imensa pelos artistas. Em uma carreira de mais de 60 anos, Midani tomou muitas decisões corporativ­as que pareciam equivocada­s, apostando em discos de apelo comercial reduzido. Mas foi graças a essas apostas que a música brasileira ganhou alguns de seus maiores clássicos.

Hoje é fácil elogiar os Mutantes e sua genial combinação de música pop e experiment­alismo. Mas o público esquece um detalhe importante: os Mutantes vendiam pouquíssim­os discos. Foi necessário um chefe de gravadora com pulso firme e convicção inabalável para manter a banda sob contrato.

Na virada dos anos 1960 para 1970, Midani comandava dois selos: o Philips, que reunia a nata da MPB —Elis Regina, Chico Buarque, Caetano Veloso, Jair Rodrigues, Maria Bethânia, Gal Costa, Gilberto Gil, Jorge Ben, Raul Seixas e Wilson Simonal, entre outros—, e o Polydor, de artistas mais “populares”, como Tim Maia, Evaldo Braga, Odair José e Hyldon. Midani usava a grana que ganhava com os campeões de venda para investir em quem vendia menos.

Assim, bancou vários discos transgress­ores e de pequeno apelo comercial, como o dilacerant­e “Lóki?” (1974), primeiro disco solo de Arnaldo Baptista depois de sua saída dos Mutantes, e “A Tábua de Esmeralda” (1974), de Jorge Ben, uma “ópera” mística, espiritual e cósmica, com 12 músicas que abordavam a história de dois alquimista­s, Nicolas Flamel e Paracelso.

Outra aposta ousada foi “Gita” (1974), segundo disco solo de Raul Seixas, uma ode ao ocultista britânico Aleister Crowley, um bruxo que se autoprocla­mava a “Grande Besta 666” e defendia o sexo livre e o uso de drogas.

“Lóki?” e “A Tábua de Esmeralda” não venderam bem, enquanto “Gita” foi um estouro. Mas todos viraram clássicos.

Em 2012, entreviste­i Midani e perguntei por que havia lançado discos tão anticomerc­iais nos anos 1970, como “Araçá Azul”, um LP experiment­al de Caetano Veloso que bateu recorde de devoluções em lojas: “Porque eu achei, com toda sinceridad­e, que ia vender. Na minha cabeça, aquilo seria um estouro. Não quero me atribuir um papel de Dom Quixote, mas eu achei que ia vender, e quebrei a cara”.

Midani confiava nos artistas e pensava a longo prazo. No início dos anos 1970, contratou Erasmo Carlos, que passava por um momento de ostracismo. A Jovem Guarda acabara e seus integrante­s eram malhados pela crítica e sofriam patrulha de outros artistas, que os recriminav­am por ter feito música comercial e considerad­a de baixa qualidade.

Em uma entrevista a Ruy Castro, publicada na revista Playboy, Erasmo afirmou: “O André Midani me disse: Você vai gravar o que quiser, com quem quiser, da forma que quiser. Faça o que você quiser, mas faça. É importante qualquer coisa que você crie”. O resultado foi “Carlos, Erasmo”, um LP audacioso, com influência­s de samba-rock, soul music e rock psicodélic­o, até hoje um dos melhores da carreira do Tremendão.

Em 1989, quando já comandava a gravadora Warner, André Midani recebeu um telefonema de Marcelo Nova, exlíder da banda de rock Camisa de Vênus. Marcelo preparava um disco solo e pediu a Midani para dividir o LP com seu ídolo, Raul Seixas.

Midani tinha todos os motivos do mundo para não topar: Raul era, então, uma figura escorraçad­a no meio musical. Para piorar, o Maluco Beleza havia ironizado Midani na letra de “Conversa pra Boi Dormir” (1980): “André Sidane só faz confusão/ Sonhei com ele e mijei no colchão”. Mas André Midani topou contratar Raul. Em 19 de agosto de 1989, a Warner lançou o LP “A Panela do Diabo”. Dois dias depois, Raul Seixas morreu.

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Aline Massuca -24.set.14/Valor André Midani em sua casa na Gávea, no Rio de Janeiro, em 2014
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