Folha de S.Paulo

Fantasma, Tchernóbil renasce com turismo da tragédia nuclear

Estimulado­s por série de TV, visitantes têm movimentad­o local, que mantém aura sinistra do acidente de 1986

- Gilberto Scofield

O ucraniano Serhii Uzlov tinha 25 anos quando o reator 4 da usina de Tchernóbil explodiu, lançando na atmosfera 50 milhões de cúrios radioativo­s, uma quantidade equivalent­e a 500 bombas de Hiroshima.

Uzlov trabalhava numa mina de carvão a 200 quilômetro­s de distância do local do acidente, uma região isolada que fica a duas horas de carro ao norte da capital, Kiev, e na fronteira com Belarus.

Semanas depois daquela que é considerad­a a pior tragédia nuclear da história, quando o governo da antiga União Soviética começou a convocar as cerca de 300 mil pessoas responsáve­is pela “limpeza” do local do acidente, Uzlov pensou em se candidatar. Eram os chamados “liquidador­es”.

“Eu estava pensando em conter aquilo e salvar vidas, mas minha mulher me impediu de ir. Agora, sabendo de todas as informaçõe­s que o governo não revelou na época, eu posso dizer que foi ela quem salvou a minha vida”, diz ele.

Uzlov, no entanto, não se livrou de Tchernóbil. Ele trabalha hoje como um dos guias que diariament­e levam dezenas de pessoas em visitas guiadas à usina e às cidades-fantasmas de Tchernóbil e Pripiat, a vila de 50 mil pessoas construída em 1970 para servir de dormitório às famílias dos trabalhado­res da usina.

Todo o mês, o nível de radiação em seu corpo é medido.

O guia, no entanto, está felicíssim­o. Graças ao sucesso mundial da série “Tchernóbil”, exibida pela HBO (que ele nunca viu), o movimento de turistas interessad­os no local aumentou quase 40%.

“É estranho, mas também acho educativo que as pessoas venham conhecer o horror de um acidente nuclear”, diz.

Uzlov está correto. Se há uma sensação que fica quando se visita Tchernóbil é o horror e o espanto. Os prédios fantasmas tanto na cidade de Tchernóbil, fundada no século 12, quanto em Pripiat são assustador­es. Em Tchernóbil,a fila com os nomes das mais de cem vilas evacuadas, abandonada­s e demolidas parece uma aleia de cemitério.

Aponte par aonde a população corre upara vero“incêndio” na usina, época em que ninguém sabia o que acontecia ali, mostra o sarcófago do reator 4 acerca de 300 metros. Todos que foram assistir ao estranho incêndio colorido e suas cinzas brilhantes espalhadas pelo céu morreram em questão de semanas, conta Uzlov. Por isso o lugar hoje se chama “Ponte da Morte”.

O hospital para onde foram levados os primeiros feridos, mais tarde removidos para Moscou, jaz selado devido à radiação nuclear. O motivo? No porão enos corredores do hospital ainda se acumulam uniformes, máscaras, capacetes, material hospitalar, colchões e lençóis usados por aqueles mais afetados pela radiação.

Ao lado do hospital, a escola número 1 (eram cinco) exibe carteiras repletas de pó, livros e cadernos deixados às pressas pelas crianças em fuga. Quadros negros com pedaços de aula despencam das paredes manchadas. Parte da escola desabou. Um parque de diversões fantasma enferruja ao ar livre. Nem sequer foi inaugurado.

A abertura estava prevista para 1º de maio, mas o acidente na madrugada de 26 de abril de 1986 acabou coma festa.

A avenida principal, chamada Lênin, foi tomada pela floresta. Todo o lugar, aliás. O chão ainda é radioativo. O dosímetro sobe de 0,17 mSv (milisevier­t) para 16,74 mSv quando se aproxima o aparelho que medea radiação perto do chão. OC aféPripiat, às margens do rio de mesmo nome, em nada lembra o ambiente festivo da década de 1970.

O supermerca­do vazio pareceu mace nada série dez um bis“TheWalking De ad”,m asnada deixa o visitante mais tocado doque a creche abandonada que atendia às vilas da região, os brinquedos envelhecid­os espalhados pelas estruturas de pequenas camas enferrujad­as.

O valor de um tour por Tchernóbil varia segundo o tamanho do grupo de visitantes, os dias de visitação e o tipo de viagem (de ônibus para grupos ou de carro e helicópter­o para até quatro pessoas).

Um grupo de três pessoas, de carro, por exemplo, pode sair por US$ 722 (R$ 2.783). O passeio inclui de quatro aseis horas de visita pelas principais atrações descritas acima, ingresso e o traslado, seja para o hotel (ida e volta), seja para o aeroporto direto (são cerca de duas horas entre Kiev e Tchernóbil).

Se o turista quiser dormir na área de exclusão —sim, isso é possível e há quatro hotéis simples para visitantes—, ah osped age mé pagaàp arte.

O entusiasmo pela série e a transforma­ção da usina em um ponto turístico acabaram causando uma distorção sinistra.

Hordas de influencia­dores ou meros turistas usam os escombros das cidades como cenário para fotos descontraí­das —algumas até sensuais—, como se estivessem numa praia ou num resort milionário.

A atmosfera animada de hoje contrasta com os relatos de quem viveu a tragédia. Tatyana Kalkis guarda na memória o trabalho do pai, piloto de aviação civil, que ajudou no transporte de pessoas para fora da região de isolamento, um raio de 30 quilômetro­s ao redor da usina.

“Nós tínhamos seis anos quando a tragédia ocorreu. E de alguma forma me lembrei de como meus pais discutiram o assunto. Eram dois sentimento­s. Oprime iroéoorgul­h opara os soviéticos que, ao custo de suas próprias vidas, sacrificar­am-se para reduzir as consequênc­ias do desastre. E, o segundo, a raiva pelo fato de que as pessoas ficaram um bom tempo sem saber de nada. As pessoas caminharam nas ruas, as crianças estudaram nas escolas, viveram avida comum ”.

No livro “Tchernóbil: the History ofa Nuclear Catastroph­e”,o historiado­r ucraniano SerhiiPlok­hyenc ara a decadência dePrip iate deTchernób­ilc omo símbolo da decadência­s o vi ética:“Tchernóbi léa história de um desastre tecnológic­o que ajudou a derrubar não apenas a indústria nuclear soviética, mas o sistema soviético como um todo”.

“O acidente marcou o começo do fim da União Soviética: pouco mais de cinco anos depois, a superpotên­cia mundial desmoronar­ia, não apenas pelo anacronism­o de sua ideologia comunista, mas também por seus sistemas disfuncion­ais econômico e administra­tivo.”

Os números são extraofici­ais, mas estima-se que o desastre trouxe à antiga União Soviética um prejuízo de mais de US$ 700 bilhões (R$ 2,7 trilhões). Sem contar os milhares de mortos ao longo dos anos devido aos efeitos da radiação. Não há nada mais decadente.

É estranho, mas também acho educativo que as pessoas venham conhecer o horror de um acidente nuclear Serhii Uzlov, guia turístico em Tchernóbil

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Gilberto Scofield/Folhapress Restos de brinquedos deixados num dormitório da creche dos funcionári­os da usina, abandonada após a explosão de um reator
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