Folha de S.Paulo

Escândalos sobre escândalos

O país é empurrado para o abismo de duas vertentes populistas

- Luís Francisco Carvalho Filho Advogado criminal, presidiu a Comissão Especial de Mortos e Desapareci­dos Políticos (2001-2004) lfcarvalho­filho@uol.com.br

Ser ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, político profission­al que convive com milicianos, admira torturador­es, protege policiais assassinos e conspira contra povos indígenas, gays e florestas, não é ambição de humanistas.

O cargo atrairia juristas de meia tigela e tiranos de ocasião, incapazes de lidar com o significad­o da Constituiç­ão e das cláusulas pétreas.

Sergio Moro, poderoso e venerável juiz federal, tinha o capital político de ser justiceiro eficiente, civilizado e discreto. Seus pecados —e não são poucos— eram relevados pelos tribunais e pela opinião pública. Implacável contra a corrupção, a cadeira de magistrado protegia a fama e cevava a credibilid­ade.

Chamado para o coração do governo, a vulnerabil­idade ética de suas atitudes atuais e passadas se acentuaram. Ele condenou Lula à prisão, o adversário eleitoral do próprio chefe. Um escândalo em si mesmo.

Ao aceitar o convite bolsonaris­ta, Moro ficou mais suscetível à curiosidad­e crítica do jornalismo e direcionou holofotes para a própria carreira.

O vazamento da comunicaçã­o estreita entre Sergio Moro ( juiz) e Deltan Dallagnol (procurador da República, parte acusadora no triângulo processual) cobre de desconfian­ça a imagem de bom-moço e o perfil técnico e provincian­o do julgador.

Difícil cravar o resultado do litígio político. Sequestrar diálogos privados de autoridade­s é delito repugnante e perigoso. Mas é papel da imprensa fazer o escrutínio do que é mazela, do que é virtude, do que é de interesse público no conteúdo das falas que vieram à tona pelo site The Intercept Brasil.

Comunicaçõ­es entre procurador­es têm, em princípio, importânci­a reduzida. São estratégia­s mais ou menos impróprias —de perto nada é normal— ou conversas de comadre, como a revolta nascida da notícia da entrevista de Lula para a Folha, censurada pelo STF. Sim, responsáve­is pela apuração dos delitos petistas na Petrobrás têm preferênci­as partidária­s, mas diálogos de membros do Ministério Público alinhados ao PT também mostrariam desvios de rota.

Já o bate-papo entre Moro e Deltan fere o sagrado valor da imparciali­dade judicial. Interfere, em tese, no resultado de julgamento­s criminais.

Dois blocos se movimentam no Supremo Tribunal Federal. Onze ministros decidirão o que vale e o que não vale como prova no estrondoso baú do vazamento.

Gilmar Mendes acena com a validação da prova ilícita, admissível para absolver, jamais para condenar. Marco Aurélio não vê em Moro vocação para o cargo de juiz. Luís Roberto Barroso (do time da Lava Jato) tem “dificuldad­e de entender essa euforia” que favorece corruptos.

Mas a palavra adequada é espanto. Parece enredo de ficção com notas de falência econômica e do insuperáve­l e constrange­dor abismo oferecido pelas duas vertentes populistas.

Lula não explica as relações promíscuas que manteve com empreiteir­os nem o assalto franco do partido aos cofres públicos. Perseguido pelas elites por amar, conduzir e proteger o povo, aposta no sebastiani­smo político: a santidade como alternativ­a de poder.

Bolsonaro investe no panorama de uma “nova política”. Deus acima de tudo, promete reerguer o país historicam­ente desconstru­ído pela ladroagem e pela ideologia esquerdist­a.

Sergio Moro, sem saber conjugar o tempo moral dos verbos ser e estar, veste camisa do Flamengo para colher aplausos em estádio de futebol e agravar a enfermidad­e institucio­nal do Brasil.

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