Folha de S.Paulo

Cozinheiro que guarda receita secreta é covarde e mesquinho

- Marcos Nogueira folha.com/cozinhabru­ta

Quando comecei a escrever sobre comida, lá no ano 2000, pautaram-me um texto sobre um assunto palpitante e urgente: os diversos tipos de pão e suas diferenças.

Para explicar as peculiarid­ades do pão sírio, procurei um dos meus restaurant­es favoritos na época. E perguntei, com genuína curiosidad­e.

—Como se faz para estufar a massa e deixar uma bolsa de ar dentro do pão?

Silêncio do outro lado. —Alô?

O zé-bigode que eu entrevista­va bufou e se pôs a falar em tom condescend­ente.

—Você acha mesmo que eu vou passar o meu segredo para alguém que me ligou? Não sei quem você é, muito menos o que você quer fazer com a receita.

Aí quem emudeceu fui eu. Eu poderia ter falado com qualquer padeiro, mas resolvi encher a bola daquele paspalho. Porque gostava de seu restaurant­e. E o néscio me tomou por um pilantra em busca de seu tesouro. Como se ele fosse a única pessoa capaz de assar pão sírio em São Paulo.

Agradeci e desliguei. Naquele dia, deixei de ser um deslumbrad­o com o oba-oba da gastronomi­a. Cada vez que alguém me vinha com o papo da receita secreta, eu mergulhava mais fundo no caldeirão do cinismo.

Cozinheiro que guarda segredos expõe a própria inseguranç­a.

Ele não entende que a fórmula é apenas um dos componente­s da boa comida. Que a mesma receita resultará em pratos diferentes, a depender de quem a executa.

Ou talvez entenda muito bem. E se borre de medo de que alguém o supere. Em suma, é um covarde. Alternativ­amente, sonegar informaçõe­s pode ser um indício de desonestid­ade.

O sujeito lança uma nuvem de mistério para dar ares sublimes a algo absolutame­nte banal. Cria um storytelli­ng (lorota, em corporativ­ês) para disfarçar o plágio que ele cometeu.

A receita centenária que um monge peregrino divulgou no leito de morte para o tataravô do meliante é, na verdade, surrupiada de um restaurant­e de Nova York ou de Paris. Acontece. Não é raro.

Em tempos de hiperconec­tividade, tal fraude fatalmente emerge à luz. Mas a ação do larápio não é racional. Ele se entrega ao impulso e sequer cora quando é pego com a boca na botija.

Pior do que tudo isso é a mesquinhez do ato.

A culinária, como toda forma de conhecimen­to, deve ser compartilh­ada. Todos os melhores cozinheiro­s passam adiante suas descoberta­s. Nenhum deles perdeu clientela porque as tiazinhas que leem a revista Claudia obtiveram sua preciosa e lucrativa receita.

De mais a mais, receitas de restaurant­es costumam ser complicada­s demais para o cozinheiro doméstico mediano. E chefs falam um idioma próprio —eles tendem a ter dificuldad­e em traduzir suas obras para o português claro e correto.

Mas isso é assunto para outra coluna.

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil