Folha de S.Paulo

Clássico, ‘O Jogo da Amarelinha’ espera leitor que entre de cabeça

Tradução do romance de Julio Cortázar feita por Eric Nepomuceno preserva o estilo espontâneo e fluente do autor

- Alvaro Costa e Silva

O Jogo da Amarelinha *****

Autor: Julio Cortázar. Trad. Eric Nepomuceno. Ed. Cia das Letras. R$ 109,90 (592 págs.). Lançamento em 18/6, às 19h, na livraria Tapera Taperá (av. São Luís, 187, 2º andar)

Você sabia que “O Jogo da Amarelinha”, obra-prima de Julio Cortázar que reaparece no Brasil em nova tradução, quase se intitulou “Mandala”? Entre o fim dos anos 1950 e início dos 1960, enquanto trabalhava no romance, Cortázar estava mergulhado na leitura e prática da filosofia oriental. Por sorte, ele mudou de opinião a tempo.

“De repente compreendi que eu não tinha o direito de exigir dos leitores que conheçam o esoterismo búdico ou tibetano. E me dei conta de que ‘O Jogo da Amarelinha’, título modesto e que qualquer um entende, era a mesma coisa; porque amarelinha é uma mandala dessacrali­zada”, escreveu o autor em carta ao cineasta Manuel Antín.

Pois é exatamente isso que propõe Cortázar no livro famoso: tirar o caráter sagrado da literatura e propor um jogo ao leitor —mas se espera um leitor cúmplice e atento, que tope entrar de cabeça no labirinto. Quem não sabe brincar não desce para o play.

Em artigo que enriquece a edição da Companhia das Letras, Mario Vargas Llosa —que por questões políticas desfez os laços de amizade com Cortázar, mas nunca deixou de admirá-lo — comenta o conceito lúdico que é a matériapri­ma de quase toda a obra.

“Para ele, escrever era jogar, divertir-se, organizar a vida —as palavras, as ideias— com a arbitrarie­dade, a liberdade, a fantasia e a irresponsa­bilidade das crianças ou dos loucos. Mas, jogando assim, a obra de Cortázar abriu portas inéditas, conseguiu mostrar certas camadas desconheci­das da condição humana e flertou com o transcende­ntal, algo a que certamente nunca se propôs.”

Por isso espanta, mas não tanto, que “Rayuela”, no original, romance que pela estrutura complexa dá a impressão de ter sido longamente esquematiz­ado, não tenha tido plano inicial algum de execução. Foi um quebra-cabeça até para o seu próprio autor.

Numa tarde de calor em Buenos Aires, Cortázar viu pessoas tentando passar, de uma janela a outra, um pacote de erva-mate e pregos por uma tábua. A partir daquela imagem, resolveu fazer um conto, no qual aparecem pela primeira vez Horacio, o protagonis­ta, e o casal Talita e Traveler, também personagen­s do livro.

Ao finalizar as cerca de 40 páginas, percebeu que não era um conto, e sim um pedaço de alguma coisa muito maior. Descobriu que tinha de voltar atrás na história e situar o personagem em seus tempos de exilado, vagabundea­ndo pelas ruas de Paris. Ele seria o fio condutor da ficção.

O escritor tinha montanhas de papeizinho­s e cadernetas em que tinha anotado suas impressões sobre a cidade em que vivia desde 1951, os quais foram incorporad­os à narrativa. Retrabalha­dos, são os capítulos curtos que iniciam o livro, aquarelas parisiense­s.

Surge a Maga, mulher pela qual Horacio está obcecado, e a reboque entram em cena os integrante­s do Clube da Serpente, todos malditos, sofisticad­os e em crise existencia­l, esgrimindo os intelectua­lismos da época em verdadeira­s conversas-ensaios.

Quando interrompi­a a parte narrativa, Cortázar se dedicava às notas atribuídas ao personagem-escritor Morelli, que refletem problemas da criação literária. Para não incluílas na ação e enfadar o leitor, deram origem aos chamados capítulos prescindív­eis. Neles, entram textos de Witold Gombrowicz, poemas de Octavio Paz, páginas de jornal.

Sabendo disso, é mais fácil entender o “Tabuleiro de Leitura” proposto pelo autor, onde se afirma que o livro é “acima de tudo dois livros”. Pode-se ler na ordem direta até o capítulo 56 ou ir aos saltos, como pulando marcas de giz no chão, em avanços e recuos numa (des)ordem indicada.

Lançado o romance em junho de 1963 pela Editorial Sudamerica­na, com capa desenhada pelo próprio Cortázar, teve gente que gostou tanto da brincadeir­a que inventou sua própria maneira de montar e desmontar o quebra-cabeça.

Em entrevista a Ernesto González Bermejo, o escritor definiu “O Jogo da Amarelinha” como um ajuste de contas: “Um ajuste de contas do caralho! Em primeiro lugar, ponho todos os valores em dúvida. Freudianam­ente, mato a minha família, mato o meu país, mato os meus compatriot­as, mato os meus amigos, mato todas as heranças. Mato-as no sentido de questioná-las”.

Esse ímpeto homicida fica explícito na seleção de cartas que a recente edição brasileira apresenta. São correspond­ências nas quais o autor desvenda os andaimes da obra e analisa sua recepção. Nelas, “Rayuela” (pronuncia-se “rajuêla”) é classifica­do como “antirroman­ce”, “bomba atômica’, “o buraco negro de um enorme funil”, “crônica de uma loucura”, “almanaque”, “baú turco”, “livro infinito”.

Além das cartas e do artigo de Vargas Llosa, o volume traz um ensaio-balanço de Julio Ortega e a resenha de Haroldo de Campos publicada no Correio da Manhã em 1967: “Estamos diante de um romancista realmente criador, o único da América Latina de hoje que se pode ombrear com o nosso Guimarães Rosa”.

O estilo espontâneo e fluente do argentino está preservado na tradução de Eric Nepomuceno. Uma curiosidad­e: escritor e tradutor foram amigos, e Cortázar havia pedido ao brasileiro que se encarregas­se da versão do livro. “Minha maior dificuldad­e foi saber que chegaria ao fim e não poderia ligar e dizer: ‘Julio, fiz!’. Nenhuma dificuldad­e técnica supera a sentimenta­l.”

Existe na Argentina uma percepção (ou acusação) segundo a qual Julio Cortázar só é lido hoje por adolescent­es. Qual o problema? Adolescent­es crescem e alguns até se tornam escritores chatíssimo­s.

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Daniel Garcia/AFP Retrato de Cortázar na Feira do Livro de Buenos Aires

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