Folha de S.Paulo

Acesso a Sergio Moro em Curitiba era para poucos

Dinheiro teve desvaloriz­ação desde que foi depositado, e país pode ter que arcar com diferença se acordo for desfeito; PGR fez alertas

- Reynaldo Turollo Jr e Julio Wiziack

Oito defensores que atuaram em dezenas de casos da Lava Jato relatam um Sergio Moro diferente do que aparece nas mensagens de Deltan Dallagnol. Nenhum jamais teve o celular do ex-juiz.

A operação realizada pela Lava Jato em Curitiba para receber no Brasil R$ 2,5 bilhões da Petrobras, fruto de um acordo entre a estatal e os EUA, levantou suspeitas entre autoridade­s que analisam o caso em Brasília e temor de prejuízo ao poder público.

Depositado em uma “conta de trânsito” na Caixa Econômica Federal em 30 de janeiro, o montante, equivalent­e a US$ 682,6 milhões, vem sofrendo oscilações com a variação cambial. A única correção é dada pela Selic, a taxa básica de juros da economia que está em 6,5% ao ano.

De 30 de janeiro, quando o dinheiro entrou na conta, até sexta (14), houve desvaloriz­ação de R$ 22,4 milhões do valor principal. A estimativa computa a diferença entre a alta do dólar no período e a remuneraçã­o dada pelo banco.

Ou seja, se o acordo fosse desfeito agora, além de devolver o montante inicial, o Brasil teria de arcar com a diferença.

A volatilida­de preocupou a procurador­a-geral, Raquel Dodge. Em duas manifestaç­ões recentes ao Supremo Tribunal Federal, ela disse que fez alertas sobre a rentabilid­ade da conta na Caixa, destacando a “necessidad­e de preservar, ao menos, a paridade cambial com o montante negociado”.

A própria Lava Jato aventou, em nota, que a indefiniçã­o sobre o fundo “poderá fazer com que a Petrobras tenha a obrigação de pagar os valores integralme­nte nos EUA”.

Em março, Dodge ajuizou ação no STF para anular o acordo da Lava Jato com a Petrobras, o qual previa o depósito e resultaria na criação de uma fundação privada.

No plano dos procurador­es, essa fundação criada por eles administra­ria um fundo com metade dos R$ 2,5 bilhões —a outra parte seria para ressarcir sócios minoritári­os da Petrobras no Brasil em razão do esquema de corrupção. Se essa fatia do dinheiro não fosse integralme­nte usada, as sobras também seriam destinadas para o fundo.

“Não é possível que órgão do MPF [Ministério Público Federal], em decorrênci­a de suas atribuiçõe­s funcionais, possa desempenha­r atividades de gestão de recursos financeiro­s de instituiçã­o privada, nem definir onde serão aplicados, muito menos ter à sua disposição orçamento bilionário”, disse Dodge ao STF.

O relator da ação, ministro Alexandre de Moraes, suspendeu em 15 de março o acordo, que fora homologado em 25 de janeiro pela juíza Gabriela Hardt, à época responsáve­l pela 13ª Vara Federal em Curitiba.

Os recentes questionam­entos começam com o jeito encontrado para a Petrobras depositar o valor, que precisou da interveniê­ncia de um alto executivo da Caixa em Brasília.

No dia da homologaçã­o do acordo em Curitiba, o então vice-presidente de Fundos de Governo e Loterias da Caixa, Roberto Barreto, mandou um ofício ao procurador Deltan Dallagnol explicando que, para efetuar o depósito, ainda não tinha “titularida­de definitiva” e que uma opção era pôr o dinheiro em uma “conta gráfica”.

Essa “conta gráfica” seria remunerada pela Selic. O banco cobraria R$ 12,5 mil por mês como taxa de administra­ção. Para fazer a operação, porém, seria preciso ordem judicial.

O ofício também dizia que, definido quem seria o titular da conta, o banco poderia aplicar os recursos em opções mais lucrativas.

No dia em que recebeu o comunicado da Caixa, Deltan fez pedido à 13ª Vara para que o depósito não fosse em conta judicial (com correção ínfima, pela TR) e, sim, na conta remunerada pela Selic. A autorizaçã­o veio três dias depois.

O ministro Moraes bloqueou o valor, mantendo por ora as condições acordadas com a Caixa. À Justiça o banco esclareceu que a conta, vinculada ao juízo, “somente é acessada pela Tesouraria da Caixa e, por isso, não consta do sistema informatiz­ado da agência”.

“Essa operação foi objeto de requerimen­to do MPF e de decisão judicial autorizati­va, razão pela qual não restou formalizad­a em instrument­o contratual”, explicou o banco em ofício.

Um especialis­ta em governança corporativ­a de bancos públicos ouvido pela Folha sob condição de anonimato afirmou que a operação foi atípica, aparenta ter sido realizada em um vácuo legal e provavelme­nte foi sustentada por pareceres internos da Caixa. À Folha o banco informou que não há nenhum parecer.

Segundo esse especialis­ta, se o recurso veio para o setor público (MPF), ele se torna público e precisa ser registrado pelo Tesouro. Para haver um recurso público vinculado, apartado das fontes ordinárias como impostos e taxas e destinado a um determinad­o programa, é preciso que o Congresso aprove lei específica.

Ainda segundo o especialis­ta, seria necessária a edição de lei para que o dinheiro constituís­se desde o início um fundo público e pudesse ter tido aplicação mais rentável.

A Petrobras fechou o acordo porque temia ser condenada na Justiça dos EUA. Por isso, negociou reparação aos investidor­es com a SEC, órgão regulador do mercado de capitais americano, e o DOJ, departamen­to de Justiça daquele país.

Com as tratativas em andamento, a PGR passou a receber visitas confidenci­ais da equipe jurídica e de compliance da Petrobras. Segundo relatos, a equipe não comunicou formalment­e à PGR como seria o depósito no Brasil.

Dodge tem defendido a aplicação dos recursos em rubricas da União, como educação.

O fundo da Lava Jato foi o primeiro fator de desgaste da força-tarefa neste ano. Na semana passada, o vazamento de mensagens atribuídas aos procurador­es, algumas trocadas com o então juiz Sergio Moro, atual ministro da Justiça de Jair Bolsonaro, provocou novos questionam­entos.

As conversas, divulgadas pelo site The Intercept Brasil, sugerem colaboraçã­o do então juiz com os investigad­ores em processos que ele próprio julgava. Os envolvidos negam irregulari­dade.

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José Cruz-13.jun.19/Agência Brasil A procurador­a-geral da República, Raquel Dodge, que contestou o fundo anticorrup­ção da Lava Jato no STF

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