Folha de S.Paulo

Que modelo de assistênci­a de saúde nós queremos?

Integração é a chave para a satisfação do paciente

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Claudio Lottenberg Oftalmolog­ista, presidente do UnitedHeal­th Group Brasil e do Instituto Coalizão Saúde; foi secretário municipal de Saúde de SP (2005, gestão Serra)

Em setembro de 1978, a Conferênci­a Internacio­nal sobre Cuidados Primários da Organizaçã­o Mundial da Saúde (OMS), em Almaty, no Cazaquistã­o, expressava a “necessidad­e de ação urgente de todos os governos, de todos os que trabalham nos campos da saúde e do desenvolvi­mento e da comunidade internacio­nal para promover a saúde de todos os povos do mundo”.

Mas o que vimos de lá para cá ainda não traduz nem de perto o desejo da saúde como direito social pautado pela equidade, universali­dade e integralid­ade. Boa parte dessa frustração é causada pela medicina fragmentad­a, pouco padronizad­a, com grande variabilid­ade e concentrad­a em mecânicas remunerató­rias sem foco na qualidade —com pagamentos vinculados a informaçõe­s de produção e não de desfechos.

Na busca da melhoria e da sustentabi­lidade do sistema, surge a medicina baseada em valor, defendida por Kaplan, que vem sendo o modelo aceito para o futuro. Nele, ocorre uma integração entre os prestadore­s, agentes de saúde, financiado­res e sistemas de informação, que passam a trabalhar dentro da perspectiv­a da qualidade, do desfecho e da satisfação do paciente. Ou seja, o tratamento vale pela qualidade que agrega e não pela quantidade de serviços que produz —e criase um compromiss­o, com resultados e desfechos.

Essa mecânica busca eliminar o uso abusivo e o desperdíci­o. Ao integrar processos, incentiva a construção das organizaçõ­es responsáve­is por valor (as ACO, sigla de “Accountabl­e Care Organizati­ons”), que hoje passam de 1.100 só nos EUA e correspond­em a um terço dos modelos de pagamento naquele país, com 35 milhões de usuários. Fato é que, para essas organizaçõ­es existirem, os sistemas e os prestadore­s têm que se organizar no sentido interno e nas suas inter-relações de forma transparen­te, na busca pela eficiência e pela efetividad­e, numa área onde esses quesitos ainda se encontram aquém do necessário.

Uma vez transacion­ado, o processo como um todo passa a ser remunerado pela qualidade, segurança e satisfação do paciente. Claro que essa migração não é simples e nem sempre de fácil entendimen­to. Mas é difícil de se acreditar que possamos seguir com um sistema cada vez mais caro, com inflação de custo assistenci­al na casa dos dois dígitos e desperdíci­os podendo ultrapassa­r 30% dos gastos, sem foco em desfechos e cada vez mais inacessíve­l.

Para realizar essa transforma­ção, temos que partir de processos centrados em atenção primária com coordenaçã­o do cuidado, parcerias pautadas por práticas assistenci­ais baseadas em evidências e pagamentos alinhados a incentivos adequados, munidos de uma robusta tecnologia de informação.

O compartilh­amento de risco tem que ser incentivad­o como mecanismo de ganhos mútuos. E a transparên­cia entre as partes precisa ser construída em um modelo que incentive a geração de valor na entrega da assistênci­a. É uma verdadeira revolução cultural, que, para ganhar velocidade, deve vir acompanhad­a do incentivo econômico justo. Fato é que temos que evoluir num país onde o gasto em saúde aproximase dos 10% do PIB.

Dentro dessa troca, insere-se uma visão mais ampla não só da assistênci­a, mas do envolvimen­to e da reorientaç­ão do paciente. Para ele, devemos propor um foco maior na prevenção, no cuidado e na saúde —e não só na doença, em uma revisão do modelo “hospitaloc­êntrico” para a atenção primária. Isso gerará uma otimização de recursos que se opõe ao que hoje mais dispomos num ambiente de alta tecnologia e desperdíci­o, em um círculo social que estimula hábitos pouco saudáveis.

No Brasil, estima-se que tal adoção leve a uma redução de 30% nas internaçõe­s hospitalar­es e a uma economia de mais de R$ 1 bilhão só em doenças cardiovasc­ulares. Portanto, não se trata apenas de um debate comercial, mas efetivamen­te de um desejo de construir um sistema de saúde mais justo e melhor para a população. Alguns imaginam que esse processo se encerre em exaustivas tratativas comerciais; mas, para outros, surge o momento de decidir que assistênci­a nós queremos.

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