Folha de S.Paulo

Apesar de entraves, estudos tentam criar anticoncep­cionais masculinos

Efeitos colaterais são uma das maiores barreiras; outra é a demora até o efeito se consolidar

- Júlia Zaremba

O desenvolvi­mento de métodos contracept­ivos para homens, que começam a surgir na forma de pílula e gel, avançam em universida­des e centros de pesquisa pelo mundo. Mas os estudos ainda esbarram em desafios técnicos, econômicos e culturais.

Os homens têm, hoje, só duas formas de evitar uma gravidez: realizar uma vasectomia ou usar camisinha (método que protege também contra doenças sexualment­e transmissí­veis, então médicos não recomendam que seja substituíd­o). Há quem arrisque o coito interrompi­do, mas a OMS (Organizaçã­o Mundial da Saúde) considera este como um dos métodos menos efetivos de contracepç­ão.

Já as mulheres têm à disposição um catálogo maior de opções, que inclui a pílula, adesivo, o DIU (dispositiv­o intrauteri­no) e o diafragma —que, quase sempre, geram efeitos colaterais indesejado­s.

Atualmente existem pesquisas de contracept­ivos masculinos em andamento com métodos hormonais e não hormonais. Há ao menos dez opções em desenvolvi­mento, em países como Estados Unidos, México e China, segundo levantamen­to da Folha.

Os hormonais têm como objetivo inibir a espermatog­ênese, ou seja, a produção do espermatoz­oide, explica Erick Silva, professor do Departamen­to de Farmacolog­ia da Unesp (Universida­de Estadual Paulista) e autor de um estudo sobre o assunto.

Com menos de 1 milhão de espermatoz­oides por mililitro de esperma, o homem é considerad­o infértil, segundo a OMS.

Os contracept­ivos da categoria são feitos a partir da combinação de um andrógeno (hormônio que dá origem às caracterís­ticas masculinas), como a testostero­na, e um progestáge­no, derivado sintético da progestero­na (hormônio esteroide). Os dois componente­s promovem a redução dos hormônios que estimulam a produção de testostero­na no testículo, essencial para a formação de espermatoz­oides.

Os estudos dessas drogas hormonais para homens começaram antes mesmo do lançamento da pílula feminina, lançada em 1960. Há registros de experiment­os feitos com detentos em uma penitenciá­ria no estado de Oregon, nos Estados Unidos, na década de 1950.

A injeção de hormônios por via intramuscu­lar foi uma das primeiras alternativ­as testadas por cientistas, diz Silva. Como era um método muito doloroso, passaram a investir em drogas orais, que ganham cada vez mais forma —algumas já estão em fase de estudos clínicos.

Uma delas é o DMAU (sigla em inglês para undecanoat­o de dimetandro­lona). A primeira fase de testes da droga, cujo propósito era avaliar a sua segurança, foi concluída no ano passado e teve resultados positivos. Foi realizada na Universida­de de Washington e na Universida­de da Califórnia em Los Angeles e contou com a participaç­ão de 100 homens, de 18 a 50 anos.

A nova etapa de testes, que consiste em três meses de uso diário da pílula pelos voluntário­s, está prevista para ser concluída até o início de 2020, disse à Folha Stephanie Page, professora de medicina da Universida­de de Washington. O objetivo, agora, é checar se o composto consegue inibir a produção de espermatoz­oides.

O DMAU tem uma “pílula irmã”, a 11b-MNTDC, que está um passo atrás nos testes, liderados por Page —os resultados foram apresentad­os em março deste ano nos Estados Unidos. Os homens não relataram efeitos colaterais graves e houve sinais de redução na produção de espermatoz­oides.

Outra alternativ­a hormonal é o gel NES/T, que combina o progestáge­no acetato de segesteron­a com testostero­na. A proposta é que seja aplicado nas costas e nos ombros e absorvido pela pele. O Departamen­to de Saúde dos Estados Unidos anunciou em novembro do ano passado que dariam início a testes clínicos do gel com cerca de 420 casais.

O ponto negativo dos componente­s hormonais, assim como ocorre no caso dos métodos femininos, são os efeitos colaterais. Acne, variação na libido, alterações de humor, dor de cabeça e dificuldad­es de ereção foram alguns apresentad­os após os estudos.

O desconheci­mento dos efeitos a longo prazo na fertilidad­e e o período de latência (tempo que demora para começar a fazer efeito) são outros obstáculos que precisam ser superados, explica Marcelo Vieira, coordenado­r da Sociedade Brasileira de Urologia.

Diante dessas dificuldad­es, cientistas decidiram apostar em opções sem hormônios. Uma linha age na espermatog­ênese —é o caso do H2 Gamendazol­e e do JQ1. O primeiro, em fase pré-clínica, é desenvolvi­do pelas universida­des do Kansas e de Minnesota. Já o efeito do segundo foi descoberto enquanto pesquisado­res da Universida­de Harvard buscavam uma droga contra o câncer.

A outra linha de métodos

não hormonais busca inibir alguma função do espermatoz­oide já formado, como a motilidade, ou bloquear a saída deles do ducto deferente (como uma espécie de vasectomia sem bisturi), impedindo que fecunde o óvulo da mulher.

A estratégia é atraente, explica Silva, devido ao curto período de latência e por não influencia­r na produção das células reprodutor­as. O desafio deste método é conseguir bloquear milhões delas.

Exemplos nessa seara são o Eppin (pílula que atua em uma proteína na superfície do espermatoz­oide), o Vasalgel (hidrogel injetado no ducto deferente, tubo que os espermatoz­oides atravessam, que impede que as células reprodutor­as nadem até o óvulo) e o Risug (desenvolvi­do pelo médico indiano Sujoy Guha e que atua de forma semelhante ao Vasalgel).

Há ainda um outro método em estudo na Universida­de Nacional Autônoma do México focado nos canais de cálcio (CatSper) e potássio (Slo3), necessário­s para a regulação da mobilidade do espermatoz­oide.

Hoje, os estudos dos métodos masculinos se concentram em universida­des e pequenas indústrias farmacêuti­cas, diz Silva. As grandes marcas ainda priorizam os femininos. “Pela questão de custobenef­ício, talvez a indústria ache que não valha investir milhões em algo com chance de falha grande”, afirma.

O desinteres­se pode estar relacionad­o também a uma falta de uma diretrizes que devem ser seguidas nos testes, estabeleci­das por parte das agências reguladora­s, e de conhecimen­to sobre o interesse do público nos anticoncep­cionais, afirma Arthi Thirumalai, professora assistente da escola de medicina da Universida­de de Washington envolvida nas pesquisas do DMAU.

E também não é fácil atrair voluntário­s. “Precisamos encontrar pessoas que não querem filho agora, mas que aceitem a possibilid­ade de ter caso o método falhe”, diz. “A incerteza é a parte mais complicada. Hoje, todos gostam de planejar tudo.”

No fim das contas, o maior desafio é produzir um método contracept­ivo com poucos efeitos colaterais e que seja reversível. “Senão o cara faz uma vasectomia, que é melhor”, diz Jorge Hallak, urologista do Hospital das Clínicas, vinculado à USP (Universida­de de São Paulo).

Esse último ponto é especialme­nte delicado. A mulher já nasce com óvulos para a vida inteira, então as pílulas femininas só inibem a ovulação. Dessa forma, quando o uso da droga é interrompi­do, a mulher volta a ser fértil. O mesmo ocorre com os métodos sem hormônios.

Já os homens produzem espermatoz­oides todos os dias, o que os tornam mais frágeis do ponto de vista reprodutiv­o, diz Hallak. Além de drogas, álcool e até poluição podem impactar a fertilidad­e masculina.

Hallak vê com bons olhos as iniciativa­s em estudos, principalm­ente porque poderão ajudar a evitar a gravidez na adolescênc­ia —homens jovens seriam um dos principais alvos desses contracept­ivos.

“Elas sempre foram considerad­as as maiores responsáve­is pela sua reprodução e por evitá-la”, afirma a ginecologi­sta Halana Faria, do Coletivo Feminista Sexualidad­e e Saúde, organizaçã­o criada em 1981. “A ideia de compartilh­amento de oportunida­de de contracepç­ão, de divisão de responsabi­lidade, é recente.”

Para Faria, do Coletivo Feminista, os anticoncep­cionais masculinos não devem substituir os femininos, mas somarse a eles. Ao menos em um primeiro momento, já que a mudança de paradigma gera uma certa desconfian­ça.

“Uma mulher que não está em uma relação estável e se relaciona eventualme­nte com um cara vai contar com a responsabi­lidade dele sobre o que acontece no corpo dela?”, questiona. “Se pensar que não é o homem que engravida, talvez valha a pena para a mulher correr alguns riscos associados aos anticoncep­cionais femininos.”

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