Folha de S.Paulo

Colapsos amazônicos

Secas e uso excessivo de recursos naturais podem explicar fim de civilizaçõ­es

- Reinaldo José Lopes Jornalista especializ­ado em biologia e arqueologi­a, autor de “1499: O Brasil Antes de Cabral”

O que caracteriz­a uma civilizaçã­o em colapso? Diante desse tema portentoso, talvez venha à cabeça da maioria das pessoas a antiga Roma sendo engolida pelos bárbaros ou o misterioso fim das metrópoles maias. Existem exemplos igualmente interessan­tes, porém, bem mais perto de nós, em vários pontos da Amazônia.

Sim, a Amazônia, aquele lugar no qual quase todo mundo pensa quando vê memes falando da época “em que aqui era tudo mato”. Tudo mato, vírgula, gentil leitor.

Por volta do ano 1000 da Era Cristã, num arco gigantesco que ia da Bolívia à ilha de Marajó, sociedades complexas e populosas não faltavam na região correspond­ente à maior floresta tropical do mundo. Entretanto, antes mesmo do impacto apocalípti­co da invasão europeia a partir do século 16, várias dessas sociedades sumiram do mapa. A pergunta que não quer calar é, obviamente, esta: por quê?

Uma tentativa ambiciosa de elucidar esse mistério está prestes a ser publicada na revista científica Nature Ecology & Evolution. Os responsáve­is pelo estudo são membros de uma equipe internacio­nal de cientistas, coordenada pelo arqueólogo brasileiro Jonas Gregorio de Souza, da Universida­de Pompeu Fabra, em Barcelona.

O time de cientistas resolveu examinar a intersecçã­o entre a organizaçã­o econômica e social desses antigos grupos amazônicos, de um lado, e as idas e vindas do clima, de outro. Para isso, valeram-se de dados obtidos a partir de sedimentos do fundo do Atlântico e de um lago dos Andes, bem como de estalagmit­es de cavernas no Brasil. Flutuações na composição química dessas amostras funcionam como um calendário das alterações climáticas enfrentada­s pela Amazônia ao longo dos séculos.

Para entender as conclusões da análise, vale a pena considerar as sociedades pré-colombiana­s nas pontas leste e oeste da Amazônia. Do lado oriental, temos a cultura que dominou a ilha de Marajó (PA) entre os anos 400 d.C. e 1200 d.C., mais ou menos. Esse povo construiu morros artificiai­s como forma de se adaptar às enchentes periódicas da ilha. Nessas grandes plataforma­s, havia aldeias com população numerosa e rituais funerários cheios de pompa, que deixaram para trás uma cerâmica sofisticad­a. Os antigos marajoaras tinham ainda represas nas quais praticavam a criação intensiva de peixes.

Já no oeste, do lado boliviano, os habitantes dos chamados Llanos de Moxos também lidavam com um ambiente relativame­nte aberto e periodicam­ente inundado, como Marajó, mais ou menos na mesma época. Construíra­m intrincado­s sistemas de canais e campos elevados para uso agrícola, o que parece ter levado ao controle desses recursos por uma elite.

Quando ondas de seca se abateram sobre a região, o que aconteceu com ambas essas sociedades poderosas? Sim, você adivinhou: colapso. Ao que parece, a dependênci­a do uso intensivo de recursos hídricos e agrícolas e as hierarquia­s rígidas aumentaram a vulnerabil­idade desses grupos às flutuações do clima.

Ao mesmo tempo, porém, as aldeias monumentai­s do Alto Xingu, com suas fortificaç­ões e estradas largas, e a “metrópole” que existia onde hoje fica Santarém (PA), sobreviver­am. Esses locais resistiram ao colapso porque teriam baseado sua economia em sistemas agroflores­tais —basicament­e, florestas com espécies selecionad­as para uso humano, suplementa­das com lavouras mais modestas. Era uma estratégia mais conservado­ra, voltada para o longo prazo, e não para os ganhos de curto prazo. Quem tiver ouvidos para ouvir, que ouça.

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