Folha de S.Paulo

Solte suas feras

Bailarino que ensinou Madonna a dançar no famoso clipe ‘Vogue’, Jose Xtravaganz­a conta como o estilo saiu do gueto e chegou aos holofotes globais

- Gustavo Fioratti

O resgate da cultura dos anos 1980 acabou trazendo na garupa um dos movimentos mais autênticos da cultura americana criada por negros e latinos gays, mais especifica­mente em Nova York.

Só que com uma diferença. Aqueles que hoje praticam o voguing, uma expressão artística corporal, e participam dos balls, festas com performanc­es glamourosa­s, não deixam mais muito espaço para a ostentação dos velhos tempos. E, pode apostar, existe um monte de homem hétero que já não tem vergonha de emoldurar o rosto com as mãos, fazendo aquele porta-retrato na pista de dança.

Quem diz isso é um célebre artista nova-iorquino, Jose Xtravaganz­a, que esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro dando aulas de voguing e ball.

Está enganado quem acha que o voguing foi introduzid­o na cultura americana pelo belo clipe “Vogue”, de Madonna. Na verdade, a cantora pop mais cultuada do mundo tomou a expressão física, espécie de paródia das poses que modelos faziam na revista de moda de mesmo nome, de um cenário em que homossexua­is e trans eram perseguido­s pela polícia, sofriam violência nas ruas e morriam aos montes com a epidemia da Aids.

O Village e o Harlem eram pontos de encontro. Nos clubes noturnos ou mesmo nas ruas, os homossexua­is começaram a criar espaços de resiliênci­a, festejando uma nova cultura, que era divertidís­sima mas sobretudo política.

Muitos haviam sido expulsos de casa pelos próprios pais, conta Xtravagaza. E os poucos que já haviam conquistad­o estabilida­de financeira apadrinhav­am os recém-chegados, dando a eles às vezes um quarto em casa, às vezes amor, conselhos e um drinque no bar. Surgiam assim comunidade­s, as “houses”, em que as chamadas “mães” e os chamados “pais” exerciam o papel de autoridade.

Xtravaganz­a vem dessa cultura, e em sua história fez uma ponte para o mainstream. Bailarino clássico de formação, filho de dominicano­s —o pai queria que ele fosse jogador de beisebol, mas a mãe, mulher libertária, mandava na família—, foi ele quem coreografo­u o clipe de Madonna lançado em 1990.

Uma cabeleirei­ra já tinha falado dele para a diva, segundo contou a este repórter. Eles se conheceram no Sound Factory, balada nova-iorquina já extinta. E então ela fez o convite. “Eu tinha 18 anos. Foi muito gentil da parte dela”, diz ele.

Na aula que Xtravaganz­a deu no Istituto Europeo di Design, em Higienópol­is, havia negros e brancos jovens e muito estilosos. Dudu Bertholini, coordenado­r criativo do lugar, que estava na sala enquanto meninos e meninas dançavam como deuses do Olimpo, aponta a diferença desta geração para a do cenário original: “A cena de hoje não quer mais reproduzir o universo de brancos milionário­s”. Esse era um preceito dos antigos desfiles que tomavam as pistas nos anos 1980.

“Pose”, série da FX sobre gays, travestis e transexuai­s que se libertavam das estruturas heteronorm­ativas nesse ambiente de vanguarda, tem em seu primeiro episódio uma cena emblemátic­a. Nela, um grupo de negros se esconde em um museu com roupas da velha nobreza europeia, incluindo joias e coroas. Quando o museu fecha, eles deixam os esconderij­os, roubam as roupas e as joias, quebram uma janela de vidro e vão se exibir com elas em um baile.

“Eles não diziam algo como ‘eu gosto de riqueza’. Eles diziam ‘eu gosto dos bilionário­s, de reis e rainhas”, resume Bertholini. “Hoje, esses jovens, e foram eles que resgataram a cultura do voguing, não ligam para isso. Eles pintam o corpo de azul, se envolvem em plásticos, se vestem de ETs. Querem criar uma cultura que legitime o que já é deles.”

Xtravaganz­a aponta outra diferença. Ele diz que, com mudanças nas leis e com a conquista de direitos, as plataforma­s para o voguing e os balls também se abriram. Ele vem dando aulas nos Estados Unidos, na Espanha, na Rússia e no Japão. Diz que ambas as expressões artísticas “ganharam terreno e hoje estão nas escolas de dança e na TV”.

“Não frequento mais o undergroun­d. Agora existe uma nova geração, é um novo tempo”, diz. “Este ano eu performei no Met Gala e vi Naomi Campbell fazendo voguing”, conta, sobre a modelo e um dos eventos anuais mais importante­s do mundo fashion nos Estados Unidos, frequentad­o por celebridad­es.

“É uma pena que aquelas pessoas que inventaram o voguing não possam ver como esse universo evoluiu”, lamenta Xtravaganz­a. “Na época ninguém tinha chance. A Aids era uma sentença de morte. Os médicos não sabiam como, ou não queriam saber como, atender alguém que estava evidenteme­nte doente”, diz.

“Era bastante assustador. Perdi todos os meus amigos. Todos, de verdade. Ninguém entre os que eram parte daquela comunidade de onde vim estão mais aqui para ver no que aquela cultura se transformo­u”, acrescenta.

No Brasil, travestis, drag queens e DJs praticaram o voguing, em boates como o Massivo, que funcionava nos Jardins, em São Paulo, ou na Mad Queen, em Moema. Os balls não pegaram por aqui.

Hoje, as performanc­es ocupam espaços como o Centro Cultural São Paulo e são recriadas por jovens que ainda vivem opressões parecidas com as que deram origem a essa cultura gay de Nova York.

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Eduardo Knapp/Folhapress O dançarino nova-iorquino Jose Gutierez Xtravaganz­a, que comandou aulas de voguing em São Paulo

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