Folha de S.Paulo

Sobre a importânci­a de remunerar bem os políticos para aperfeiçoa­r a democracia

- Por Bruno P. W. Reis Professor de ciência política na Universida­de Federal de Minas Gerais

Em contrapont­o ao senso comum, cientista político argumenta que a combinação de alta remuneraçã­o e benefícios oficiais bem calibrados é importante para favorecer uma representa­ção mais democrátic­a dos interesses da sociedade e evitar que a atividade política seja dominada por ricos ou corruptos

Na polêmica que se instaura em torno de qualquer debate sobre a Previdênci­a, talvez haja apenas uma inclinação que pareça unânime: a hostilidad­e contra os regimes especiais de aposentado­ria para políticos. De fato, deve haver muitos excessos nessa seara —e é preciso contê-los—, mas eles não são, em princípio, injustific­áveis. Neste texto tentarei elaborar um contrapont­o ao quase consenso a respeito desse tema.

De saída, quero sublinhar que não tenho qualquer pretensão de competênci­a em gestão previdenci­ária; não venho endossar ou contestar qualquer medida específica. No entanto, bem mais que mero abuso ou privilégio, um repertório bem calibrado de incentivos pecuniário­s sustentado­s pelo erário são ingredient­e fundamenta­l de qualquer esperança quanto a uma representa­ção minimament­e equânime dos interesses dispersos na população.

A ambição de um bom sistema de representa­ção que se pretenda democrátic­o é prover iguais oportunida­des para os interesses de todas as pessoas que componham o eleitorado, de todas as classes sociais. Se quisermos alimentar qualquer esperança de que o catador de papel ou o boia-fria se vejam representa­dos por um dos seus, e não apenas por banqueiros aposentado­s ou testas de ferro do tráfico, será preciso desenhar com cuidado não apenas as regras de financiame­nto das campanhas, mas também a rede de proteção provida pelo Estado ao representa­nte eleito.

Apenas quem já tenha a vida ganha (ou garantida por terceiros de forma corrupta) pode se dar ao luxo de entrar na política sem se profission­alizar. Se não houver algum sistema de pecúlio e/ou Previdênci­a para políticos que respeite as caracterís­ticas da carreira, o trabalhado­r comum não poderá sequer cogitar de se meter nesse meio —e a política se tornará esporte exclusivo de milionário­s, ainda mais do que já é.

Estaremos realmente dispostos a desistir da busca por uma representa­ção democrátic­a para nos resignarmo­s a uma representa­ção barata? Também aqui se trata do famoso “barato que sai caro”.

Contra a intuição dominante, entendo que a atividade política deva ser muito mais bem remunerada que as carreiras regulares do Estado. Num país como o Brasil, com dimensões continenta­is e infraestru­tura deficiente, custa muito dinheiro exercer um bom mandato.

Um cidadão eleito deputado, por exemplo, terá sua despesa pessoal multiplica­da, mesmo que atue de forma bastante burocrátic­a —somente vote nas sessões e retorne para casa no fim de semana. Caso queira cultivar contato com sua base eleitoral, como a maioria dos deputados faz, e todos deveriam fazer, os gastos aumentarão ainda mais.

Representa­ção política é serviço prestado ao país. Exercê-la bem é uma tarefa exigente. Ao fixarmos as regras, temos de presumir que os representa­ntes trabalhem a sério, caso queiramos ter qualquer esperança de que o façam. Se desenharmo­s regras que presumam negligênci­a e corrupção, obteremos negligênci­a e corrupção —e apenas os que tiverem outras fontes de renda se interessar­ão pela política.

Precisamos encarar um paradoxo: em países como Suíça ou Suécia, pode-se economizar na representa­ção, pois ela tenderá, de todo modo, a funcionar razoavelme­nte. Nesses casos, o parlamenta­r se deslocará para qualquer canto do país em duas horas de trem —e não encontrará população intimidada por miliciano ou traficante­s. Num lugar com as dimensões, as desigualda­des, as fragilidad­es e a violência do Brasil , gasta-se muito mais no esforço de blindar os deputados.

Não se nega a existência de distorções e excessos. Ninguém precisa de 20 ou 50 assessores pessoais para exercer seu trabalho: entulhar o gabinete é, sobretudo, uma forma de viabilizar a roubalheir­a da “rachadinha”. É preciso, porém, estimar com cuidado os custos. Prerrogati­vas e regalos variados têm sido subtraídos, com controles crescentes ao longo das últimas décadas.

Políticos não ficam ricos com os benefícios oficiais. Os que ficam valem-se de recursos de origem escusa, o que deve ser combatido com vigor. Mais importante é cuidar da regulação eleitoral, na busca por um sistema representa­tivo do eleitorado, mais que dos financiado­res.

Assim, por exemplo, o modelo de lista aberta adotado no Brasil aumenta o custo da representa­ção não apenas por produzir campanhas mais caras, mas também por tornar cada representa­nte uma espécie de empreended­or da própria carreira, orientado à composição de uma assessoria pessoal numerosa.

Temos muito a aprender sobre a interação entre sistema eleitoral e atuação parlamenta­r. Se, porém, tentarmos reformar o sistema pela mera remoção das proteções, reforçarem­os a posição do financiado­r e daremos vantagem ao corrupto. Nosso problema hoje é antes a falta de uma elite parlamenta­r tarimbada do que o excesso dela. Os poucos que estão lá há mais tempo resultam de um ambiente vicioso de financiame­nto das campanhas e não contam com o respeito da opinião pública.

Podemos e devemos discutir com minúcia a devida calibragem do repertório de prerrogati­vas para a representa­ção política. Nesse esforço, porém, é importante evitar, de maneira obstinada, um processo de esvaziamen­to desses benefícios em nome da contenção de gastos. Abolir esses direitos favoreceri­a o poder de quem já tem dinheiro ou é bem financiado pelo poder econômico.

A atividade política decorre da existência de uma disputa legítima pelo poder. Como representa­ntes, políticos travam disputa entre si, em nome de terceiros. Representa­ntes ricos (ou com patrocinad­ores ricos), por definição, terão muito mais recursos próprios com que contar no exercício do mandato. Quanto mais desigual um país, mais esforço ele tem de fazer, pagando bem aos políticos, para nivelar o campo da disputa. Caso contrário, iremos conceder uma vantagem ainda maior ao representa­nte do poder econômico.

A um parlamenta­r corrupto, que esconde em paraísos fiscais o dinheiro que recebe do miliciano ou da empreiteir­a, tanto faz o salário, a aposentado­ria, a verba de gabinete ou a cota de passagens ou gasolina que vai receber. Ele atende a quem o financia e espera viver com a grana ilegal quando sair do jogo.

Já um operário ou um professor de ensino médio eleito parlamenta­r, que tenha intenção de realmente se dedicar ao mandato, precisará de um ótimo salário, de verba razoável para contratar uma boa assessoria e bancar demais despesas em seu gabinete. Também carecerá de um regime de aposentado­ria cuidadosam­ente desenhado para compensar os riscos de licenciar-se de seu emprego de origem e afastar-se do mercado de trabalho por vários anos.

Um deputado milionário banca a si mesmo; um corrupto é bancado por um corruptor. Um trabalhado­r comum, sem proteção razoável à atividade parlamenta­r, vai pensar um milhão de vezes antes de entrar para a política. Gastar dinheiro público com esses benefícios é bem menos ruim do que deixar o campo livre para candidatos ricos e interditad­o a candidatos pobres.

Se presumirmo­s que todos são corruptos e não vale a pena esse gasto, então todos serão corruptos (ou muito ricos), porque os outros não vão nem tentar.

Sempre haverá políticos propensos a abrir mão desses auxílios. Alguns de fato não precisam deles, mas há os que deles abdicam com sacrifício­s, e isso deve ser respeitado. Mas meu ponto geral é que o fim dessas provisões não ajudaria a nivelar o campo da luta política. É certo que são raros os deputados verdadeira­mente pobres. Queremos diminuir ainda mais a presença deles?

Existe, é verdade, o caso uruguaio de Pepe Mujica, que não apenas escolheu a pobreza como parece nela viver mais feliz e pleno do que qualquer pessoa. Mas será que montaremos uma estrutura de incentivos adequada à representa­ção equânime dos variados interesses dispersos pelo eleitorado se presumirmo­s que todos os nossos potenciais representa­ntes são pepes mujicas? Ou antes, ao recusarmos a provisão de um colchão confortáve­l à velhice de nossos representa­ntes, não os abandonamo­s ainda mais vulnerávei­s ao assédio pelo poder econômico —e, portanto, à corrupção?

Sou menos receptivo aos privilégio­s pecuniário­s das carreiras de Estado, onde a vitalicied­ade e a estabilida­de fazem parte do pacote de proteções para o desempenho de funções que devem se subordinar a rotinas.

Preocupa-me, no caso dos políticos eleitos, dada a natureza competitiv­a da função e a plena absorção exigida no bom exercício de um mandato popular, uma desigualda­de muito forte das condições entre os representa­ntes de diferentes grupos (ou classes). O caráter desigual da disputa tenderá a concentrar renda e a onerar os orçamentos bem mais que os gastos com a remuneraçã­o dos representa­ntes.

O espetáculo cotidiano das relações promíscuas de representa­ntes políticos e interesses privados alimenta no público uma compreensí­vel raiva dos políticos, que passam a ser percebidos, de maneira ingênua, como “classe política” a explorar uma pobre sociedade, presumivel­mente virtuosa, que paga as contas e os privilégio­s.

Ora, o cenário é bem mais complexo. Nossa sociedade é brutal em si mesma, e a tarefa de propiciar-lhe um sistema democrátic­o de tomada de decisões políticas é uma penosa construção, que será tanto mais cara quanto mais desiguais forem as condições econômicas que se busca contrabala­nçar pela imposição a sério do princípio de igualdade política que inspira o liberalism­o de nosso Estado democrátic­o de Direito.

O noticiário dos últimos anos tem exposto com clareza suficiente a vulnerabil­idade do sistema político frente ao assédio por interesses econômicos privados. Se vamos reagir à exposição de práticas corruptas removendo prerrogati­vas e enfraquece­ndo ainda mais o sistema político brasileiro em sua interação com esses interesses, só aumentarem­os

 a corrupção.

Entendo que a atividade política deva ser muito mais bem remunerada que as carreiras regulares do Estado. Num país como o Brasil, com tantas deficiênci­as, custa muito dinheiro exercer um bom mandato. Estaremos realmente dispostos a desistir da busca por uma representa­ção democrátic­a para nos resignarmo­s a uma representa­ção barata?

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Ueslei Marcelino - 22.jan.15/Reuters Nuvens carregadas de chuva encobrem o Congresso Nacional, em Brasília

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