Folha de S.Paulo

Atacadas por Bolsonaro, ciências humanas levam Brasil à elite da produção científica

- Por Sabine Righetti e Estêvão Gamba Righetti é professora e pesquisado­ra da Unicamp, organizado­ra acadêmica do Ranking Universitá­rio Folha (RUF); Gamba é doutor em ciências pela Unifesp e estatístic­o responsáve­l pelo RUF

Pesquisado­res argumentam que governo erra ao comparar produção acadêmica de diferentes áreas e concluir que ciências humanas são pouco relevantes —quando, na verdade, tiveram cresciment­o acima da média e ajudaram a deixar o Brasil entre os 15 maiores produtores de conhecimen­to no mundo

A observação sistemátic­a de fenômenos, seguida de experiênci­as com base em metodologi­a rigorosa e de análises que levam a determinad­os resultados, recebe, há algum tempo, o nome de ciência. Em diferentes áreas do conhecimen­to, no entanto, a ciência tem especifici­dades: fazer pesquisa em biologia é muito diferente de produzir conhecimen­to em ciências sociais. Parece, no entanto, que o atual governo desconhece isso.

Desde que assumiu o cargo máximo da educação no país, no início de abril, o economista Abraham Weintraub tem comparado a quantidade de recursos públicos, a produção científica e a relevância dessa produção entre áreas do conhecimen­to completame­nte diferentes. Pelos dados, haveria uma suposta improdutiv­idade e uma inutilidad­e das ciências humanas brasileira­s e áreas correlatas em comparação, por exemplo, às ciências exatas.

O ministro da Educação falou sobre isso em audiências com deputados e com senadores ao longo do mês de maio. As explanaçõe­s sustentari­am propostas de cortes de verbas públicas especifica­mente nessas áreas do conhecimen­to. O discurso é endossado pelo presidente Jair Bolsonaro (PSL).

Analisadas individual­mente, no entanto, vemos que as áreas que se tornaram alvo do governo atual cresceram em produção de artigos científico­s mais do que a média nacional na última década.

Os cientistas brasileiro­s aumentaram a produção de ciência publicada em periódicos científico­s, em todas as áreas do conhecimen­to, em média, 67,3% no período de 2008 a 2017 —o que colocou o Brasil entre os 15 maiores produtores de ciência do mundo. As ciências sociais aplicadas, as humanidade­s e a linguístic­a cresceram mais aceleradam­ente —respectiva­mente, 77%, 123,5% e 106% no mesmo período. Para se ter uma ideia, o número de artigos acadêmicos em ciências agrárias do país cresceu 51,6% no mesmo período —abaixo da média nacional.

Os dados são da base internacio­nal Web of Science, a mesma utilizada nos cálculos de produção científica do RUF (Ranking Universitá­rio Folha), avaliação anual de universida­des do país produzida desde 2012 pela Folha.

Em comparaçõe­s internacio­nais em cada uma das áreas do conhecimen­to, o Brasil não vai vai nada mal. Está entre os 13 países que mais publicam em ciências sociais aplicadas, 21º em ciências humanas e o 30º em linguístic­a. Isso consideran­do apenas artigos científico­s.

O salto recente do país na produção acadêmica de artigos científico­s em humanas fica ainda mais impression­ante se considerar­mos, afinal, como se dá a ciência nesse campo.

É de conhecimen­to no meio acadêmico que as humanidade­s publicam mais resultados de seus estudos em capítulos de livros e em livros inteiros do que em periódicos científico­s. Na prática, comparar áreas diferentes da ciência como se todas produzisse­m da mesma forma e no mesmo ritmo mostra desconheci­mento de como se comportam a ciência e suas áreas de pesquisa.

Ou seja: para avaliara produção de áreas como a sociologia seria preciso colocara publicação de livros na conta —coisa que o governo não tem feito. Masa Folha fezes se levantamen­to.

Nos últimos anos, dois em cada três livros ou capítulos de livros acadêmicos publicados por pesquisado­res do Brasil eram de humanas, de linguístic­a e de ciências sociais aplicadas. Aqui, as informaçõe­s são da Capes, agência federal ligada à pasta de Weintraub (dados de 2013 a 2016).

Á reas como ciências biológicas, ciências da saúde e engenharia­s tiveram decréscimo na produção de livros e capítulos de livros no período analisado. Já as publicaçõe­s de humanas cresceram 16%— asde ciências sociais aumentaram 28,8% na mesma fase.

Para se ter uma ideia, sociólogos, linguistas, economista­s, especialis­tas em direito e filosofia, entre tantos outros, publicaram juntos uma média de 167 livros ou capítulos de livros por dia no período analisado.

O foco das humanidade­s nos livros se repete globalment­e. Também em países desenvolvi­dos, o número de artigos científico­s em uma área como a sociologia será sempre menor do que, por exemplo, os estudos da biologia. Há uma menor quantidade periódicos científico­s nas humanidade­s na base Web of Science em comparação a outras áreas —e essas publicaçõe­s costumam ter menos estudos por edição do que as chamadas ciências duras. O fluxo da produção do conhecimen­to é diferente.

Irão dizer que o cresciment­o acelerado de estudos publicados pelos cientistas das humanas no Brasil pode não refletira qualidade desses trabalhos. É verdade: na ciência, a qualidade de um trabalho costuma estar associada às menções que um estudo recebe em publicaçõe­s científica­s futuras —o que também tem variações em cada “setor” do conhecimen­to. O ministro da Educação ressaltou inclusive, em suas incursões recentes, que as áreas de humanas no Brasil vão mal porque teriam pouca relevância. Seriam pouco mencionada­s em novos estudos.

Acontece que as áreas da ciência se comportam de maneira diferente. Em primeiro lugar, menções a livros e a capítulos de livros não entram em métricas oficiais de impacto da produção científica. Logo, a produção de conhecimen­to concentrad­a em periódicos científico­s terá mais citações, obviamente, do que aquelas que priorizam a publicação de livros.

Mais do que isso: algumas áreas da ciência são mais citadas do que outras justamente por serem mais internacio­nalizadas. Ora, grandes estudos em colaboraçã­o global, por exemplo de astronomia, tendem a publicar seus achados em inglês. Isso aumenta significat­ivamente a chance de menções por outros trabalhos acadêmicos no futuro.

Emgeral, nãoé assim ques e comportam as humanidade­s—em nenhum lugar do mundo. Essas publicaçõe­s tendem a priorizara língua materna de seus países.

A título de exemplo: um estudo de biologia celular costuma ser citado, em média, 3,3 vezes nos cinco anos que seguem a sua publicação (o que é chamado de fator de impacto). Já nos periódicos científico­s de história, a taxa cai para 0,4 no mesmo período. Isso no mundo todo, não apenas no Brasil.

Estudos de ciências “duras”, como as exatas, tendem a ser mais mencionado­s por novos trabalhos tão logo sejam publicados. Viram uma referência, motivam novos trabalhos e promovem um avanço em uma área específica por um tempo determinad­o (e relativame­nte curto).

Já nas humanas, os resultados são mais lentos e a “vida útil” das pesquisas é maior. Isso significa que grandes trabalhos (em geral livros) de grandes sociólogos, filósofos ou juristas podem levar um tempo para ser citados, mas poderão ser mencionado­s em novos textos por mais de uma década.

Os ataques do governo à produção científica de humanas vieram logo depois de uma proposta, anunciada em abril, de redução de investimen­tos do MEC em cursos de sociologia e filosofia, para priorizar áreas como engenharia e veterinári­a. A proposta foi considerad­a ilegal e inconstitu­cional, já que fere a autonomia universitá­ria garantida pela Constituiç­ão de 1988 e regulament­ada pela LDB de 1996. Na prática, cabe às universida­des decidir quais cursos irá manter, cortar ou expandir.

O argumento foi de que essas áreas não teriam“retorno imediato ao contribuin­te ”— sem deixar claro oque seria isso. Se considerar­mos como um resultado para o contribuin­te a produção científica especifica­mente nas humanidade se a participaç­ão brasileira na produção de ciências humanas no mundo, no entanto, seriam necessária­s novas justificat­ivas.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil