Folha de S.Paulo

Bernardo Carvalho explora “o horror, o horror” do clássico “Coração das Trevas”

- Por Bernardo Carvalho Colunista da Folha, é autor de “Nove Noites” e “Simpatia pelo Demônio” (Companhia das Letras)

O texto abaixo foi adaptado do posfácio do escritor Bernardo Carvalho para nova edição de “Coração das Trevas” que a Ubu lança em julho. Ao narrar atrocidade­s do colonialis­mo, livro de Joseph Conrad aponta a ligação entre progresso e barbárie PRIMEIRÍSS­IMA MÃO

O ideal para quem abre este livro pela primeira vez seria ignorar os preâmbulos, lê-lo como um explorador que adentra às cegas um território estranho e desconheci­do. É precisamen­te o que faz Marlow, protagonis­ta e alter ego do autor nesta expedição ao coração das trevas: adentra o invisível (ou o que resistimos a ver) à procura de uma voz.

Ainda que você esteja lendo este livro pela primeira vez, é bem possível que já tenha ouvido ecos dos estudos pós-coloniais das últimas décadas e não ignore as acusações de etnocentri­smo e racismo das quais o autor foi objeto, notadament­e a partir da polêmica proposta em 1975 por um dos maiores expoentes da literatura africana moderna, o nigeriano Chinua Achebe (1930-2013).

Também é provável que tenha assistido à adaptação monumental de Francis Ford Coppola, “Apocalypse Now” (1979), que transpõe a ação da novela de 1899, do Congo Belga do fim do século 19, para o Sudeste Asiático durante a Guerra do Vietnã, nos anos 1960.

As chances de se embrenhar em território virgem e desconheci­do são, portanto, bastante pequenas, mas não custa tentar adentrar com o espírito livre e aberto.

O sentido de transposiç­ão —sobretudo a simetria e o espelhamen­to entre duplos aparenteme­nte opostos (luz e treva, civilizaçã­o e barbárie)— está presente desde as primeiras linhas do texto, quando o rio Congo, onde decorre a maior parte da ação, sobrepõe-se ao Tâmisa, de onde fala o narrador (e o autor) para em seguida desafiar e embaralhar a conexão simplista entre a representa­ção e o que nos últimos anos se convencion­ou chamar “lugar de fala”.

Em “Coração das Trevas”, as identidade­s estão submetidas a relações de correspond­ência demasiado intricadas e complexas para serem reduzidas ao imediatism­o do primeiro grau e da primeira impressão. O processo de identifica­ção de opostos contradiz os reconhecim­entos, a fachada de nomes e lugares.

Num belo texto em que associa dois autores aparenteme­nte díspares —Conrad e Nietzsche—, o crítico Edward Said cita a definição de originalid­ade segundo o filósofo alemão (ver ou fazer ver aquilo que não tem nome) para exaltar o virtuosism­o da linguagem elusiva de Conrad em seu esforço por mostrar, nem sempre de forma exitosa, o inominável.

A busca de Marlow em “Coração das Trevas” é “uma aventura intelectua­l”, “a coabitação de opostos totais”, o contrário do reconhecim­ento de nomes, valores e identidade­s fixas, predetermi­nadas e apaziguado­ras.

Aqui, progresso e civilizaçã­o já são elementos constituti­vos da barbárie. Quanto mais se aproxima do coração das trevas e da “estação interior” (não é fortuito que essa metáfora da alma ou do inconscien­te seja também a representa­ção do que pode haver de mais distante, inacessíve­l e exterior ao sujeito da razão) onde vai buscar um homem que enlouquece­u, mais o protagonis­ta se aproxima da verdade sobre si mesmo. Quanto mais procura o “outro” (o que está fora de si, em mais de um sentido), mais se aproxima de si.

O que esta novela introduz e insinua, por meio de sua investigaç­ão da alma humana, é para além do que à primeira vista poderia ser atribuído aos lugares-comuns da psicologia do seu tempo ou à inércia do racismo colonial, o contrário do que pregam as convenções e as convicções identitári­as (nacionais e raciais): um processo radical de identifica­ção como perda dos contornos do eu, o esfacelame­nto das fronteiras, uma identifica­ção alucinógen­a com o outro.

Como se o mundo físico e o espiritual se confundiss­em a ponto de, para recorrer a uma concepção essencial ao animismo das cosmogonia­s africanas, o espírito poder assumir formas diferentes e em princípio incompatív­eis entre si; como se a viagem ao interior do Congo fosse também uma espécie de transmigra­ção, uma viagem do espírito a esse lugar onde o sujeito da razão se vê confrontad­o com os limites e as fragilidad­es da sua consciênci­a e da sua autodefini­ção.

A partir de 1897 começam a circular na imprensa inglesa informaçõe­s sobre as atrocidade­s cometidas pelos brancos em nome de uma “missão civilizató­ria” no Congo Belga.

Em “Coração das Trevas”, Conrad vai definir esse projeto colonizado­r como “uma farsa sórdida representa­da diante de um sinistro pano de fundo preto”. E sobre esse cenário ele vai projetar uma investigaç­ão do que há de mais insondável no espírito humano, encarnado pela loucura ritualísti­ca de Kurtz; vai compor a aventura e o esforço de Marlow por encontrar esse sujeito que perdeu a razão, essa “voz” que, como a da esfinge, terá a lhe revelar apenas o óbvio, o que sempre esteve diante de seus olhos, por meio de enigmas que ele só poderá compreende­r quando for demasiado tarde.

“O horror! O horror!” são as célebres últimas palavras de Kurtz, tão reveladora­s quanto uma maldição em curso há milênios. É a falta de sentido que inversamen­te dá sentido à aventura do homem, à sua busca, à arte e à literatura.

Conrad está interessad­o na interface, no rebatiment­o entre uma dimensão recôndita e inominável da alma humana e sua representa­ção social e política, que aqui aparece na aberração colonialis­ta bem antes de chegarmos à África; já em Bruxelas, aparece na tranquilid­ade do autoengano interessad­o, do horror cego, da má-fé e da hipocrisia desse “sepulcro branqueado”.

Achebe acusou Conrad de representa­r os africanos como meros objetos de cena, figuras exóticas ou monstruosa­s, desprovida­s de subjetivid­ade e de interesse subjetivo, zumbis no inferno, compondo o cenário para o conflito de consciênci­a do branco colonizado­r. Mas a representa­ção de zumbis desprovido­s de interesse subjetivo poderia muito bem já se aplicar à descrição que Marlow faz dos belgas na metrópole.

O visível na prosa conradiana é o esforço de nomear o que não tem nome, ou melhor, de fazer ver, pela narrativa, o invisível, esse lugar “onde nunca ninguém esteve, no coração das trevas”.

Em 1885, o Congo passa a ser propriedad­e pessoal do rei Leopoldo 2º, da Bélgica, que vai administrá­lo como uma das mais horripilan­tes experiênci­as entre as incontávei­s atrocidade­s não só do colonialis­mo em geral, mas de toda a história da humanidade. “A mais torpe disputa por pilhagem a desfigurar a história da consciênci­a humana”, escreverá Conrad depois de trabalhar para os belgas no rio Congo.

Sob a assombraçã­o dessa experiênci­a, “Coração das Trevas” propõe uma identifica­ção com o que não queremos ver em nós mesmos. Desafiando o mito dos nacionalis­mos, sugere uma identifica­ção desestabil­izadora entre opostos. Não só somos o contrário do que queremos crer (a “causa nobre” da missão colonialis­ta), mas carregamos em nós o avesso da nossa autodefini­ção (nossa civilidade é capaz da violência mais selvagem). Somos o outro. A identidade que fabricamos é uma fachada que nos permite fazer tudo o que a contradiz.

Marlow busca no confronto com o horror o antídoto do horror, e no confronto com a loucura o antídoto da loucura: o paroxismo do sistema como cessação de seus desvarios dissimulad­os pela fachada das identidade­s, um germe suicida (uma “pulsão de morte”) embutido nos princípios dessa “empresa civilizató­ria”, agindo por alucinação, atacando o outro em si mesmo, à maneira de uma doença autoimune.

Nesse sentido, a novela continua a dizer muito sobre o nosso tempo.

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no início do diário que escreveu durante sua passagem pelo Congo, Conrad fala do encontro feliz com o cônsul britânico Roger Casement. Típico personagem conradiano, combinação de uma dimensão pessoal, secreta e obscura com a índole heroica e trágica do revolucion­ário, Casement foi responsáve­l pelo relatório que revelou ao mundo ocidental, em 1903, a extensão dos crimes cometidos contra a população negra pelos colonizado­res no Congo Belga.

Também elaborou um relatório sobre o horror (trabalho forçado, genocídio etc.) que uma companhia extrativis­ta inglesa impingia aos indígenas na Amazônia peruana. E acabou executado por traição, por seu engajament­o ao lado dos independen­tistas irlandeses e pela tentativa de cooptar os alemães, durante a Primeira Guerra Mundial, para a causa revolucion­ária.

No capítulo sobre Conrad em “Os Anéis de Saturno”, o alemão W. G. Sebald atribui à homossexua­lidade de Casement a capacidade de “reconhecer, para além das diferenças de classe social e de raça, a permanênci­a da opressão, da exploração, da submissão e da degradação daqueles que se encontrava­m mais afastados dos centros de poder”.

Sebald provavelme­nte ignorava o racismo das palavras desabridas que Casement reservara aos brasileiro­s e aos latino-americanos (“Mistura de judeu com preto e sabe-se lá mais o quê; enfim o chouriço mais repulsivo que o mundo já cozinhou em seu ensopado tropical”) num momento de exasperaçã­o durante sua experiênci­a infeliz como cônsul em Santos, em Belém e no Rio de Janeiro, nos primeiros anos do século 20. Em todo caso, o desconfort­o desse “estrangeir­o interior” em desacordo inato com as convenções lhe permitiu reconhecer o outro, porque o outro já estava nele.

É dessa condição que procura falar “Coração das Trevas”, como do inominável. O Congo é aqui. O Congo sempre esteve em nós.

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