De novo e de novo e de novo
Dramaturgos usam a repetição incessante para aludir a frustrações do debate político que não sai do lugar
Num mundo de embates ideológicos e discursos rasos, tudo soa um tanto repetitivo, esgotado mesmo. E é na linguagem do cansaço e da reiteração que o teatro tem encontrado sua metáfora mais potente para esse ciclo vicioso, em que as discussões parecem não sair do lugar.
O cotidiano de frases feitas é a premissa de “Sísifo”, espetáculo de Vinicius Calderoni e Gregorio Duvivier que passou pelo Festival de Teatro de Curitiba e terá temporadas em São Paulo e Rio no próximo semestre. A montagem baseada no mito grego do mortal condenado a carregar eternamente uma pedra montanha acima, só para vê-la despencar do topo, traz um personagem (Duvivier) preso a um ciclo repetitivo.
Seu percurso é subir uma rampa para, ao fim, cair. Faz isso 60 vezes, cada qual em tom distinto: são situações engraçadas, outras filosóficas. Muito remete à linguagem da internet, aos memes e ao gif (formato, ele mesmo, baseado na repetição). Nunca é dito explicitamente, mas a todo tempo a montagem reverbera a turbulência política por que passam o Brasil e o mundo.
Um contexto que também inspirou “Mágica de Verdade”, apresentado pelo grupo inglês Forced Entertainment na última MITsp (Mostra Internacional de Teatro de São Paulo). Criada enquanto o brexit vencia nas urnas da Inglaterra e Donald Trump ascendia à Presidência dos Estados Unidos, a peça é um jogo melancólico, espécie de game show televisivo, no qual ninguém consegue vencer.
É cômico e até ingênuo de início. Um participante precisa adivinhar a palavra que é apresentada num cartaz —e sempre erra. Então vemos essa cena novamente e outras várias vezes, com os atores em funções diferentes. Por mais que a resposta pareça óbvia, os personagens nunca chegam a uma solução e deixam a plateia num estado de desespero. Algo que o diretor Tim Etchells traduz como um “sentimento de frustração, de que a realidade está fugindo do controle”.
Não é falta de camaradagem. Os personagens se desdobram numa tentativa bufônica de soprar a resposta ao outro, mas nada funciona, não conseguem se comunicar.
A falta de diálogo, por sinal, é o que norteia “Outros”, segunda parceria do Grupo Galpão com o diretor Marcio Abreu. Para a criação, a companhia foi às ruas, numa tentativa de escutar as pessoas. O resultado é um espetáculo performativo que reverbera a dificuldade de compreender o caos contemporâneo. Ali não faltam jogos de repetição e frases ditas em sequência, como uma metralhadora de informações —símbolo da banalização da palavra.
A brincadeira com o discurso ganha forma ainda mais concreta em “Democracia”, adaptação do diretor Felipe Hirsch para o livro “Múltipla Escolha”, do chileno Alejandro Zambra. Como um jogo, os atores correm para frente e para trás do palco, tentando acertar as respostas de um questionário. É um mecanismo enfadonho que, aos poucos, descortina problemas sociais e as sequelas da ditadura chilena de Pinochet.
O absurdo de algumas questões serve bem de ironia para os discursos que tentam reescrever a história, relativizar autoritarismos passados e disseminar notícias falsas.
As fake news, não por acaso, usam a repetição como ferramenta. Um estudo da Universidade Yale, feito a partir das últimas eleições presidenciais americanas, concluiu que notícias falsas são mais efetivas quando ditas diversas vezes.
Nesse contexto, o teatro reiterativo prefere não criticar diretamente o discurso fraudulento, apenas expõe suas entranhas, deixa que o público perceba o disparate de seu mecanismo. É algo próximo ao teadocumentar. tro do absurdo, termo cunhado pelo crítico Martin Esslin nos anos 1960 para classificar peças que expressavam, em alegorias irracionais, o desalento do pós-Guerra.
“O teatro do absurdo desistiu de falar sobre o absurdo da condição humana, ele apenas o apresenta tal como existe —isto é, em termos de imagens teatrais concretas. Essa é a diferença entre a atitude do filósofo e a do poeta”, descreve o autor em seu “O Teatro do Absurdo”, de 1961.
Nessas produções também já se viam mecanismos de repetição, como no clássico “Esperando Godot” (1952), de Samuel Beckett. O personagem Estragon diz repetidas vezes ao colega Vladimir que quer ir embora, mas este logo o lembra que não podem, pois aguardam Godot —que, por sinal, nunca aparece. A resposta de Estragon é sempre um singelo e desolado “ah!”, constatação de seu fracasso.
A derrota e o esgotamento são inevitáveis, seja em argumentos, seja fisicamente. Na escalada de “Sísifo”, Duvivier vai se cansando, o corpo moleja, ele sua. Como se não tivesse mais forças para continuar a ladainha.
Em “Kintsugi, 100 Memórias”, que o Grupo Lume apresenta em São Paulo, momentos de impasse trazem o elenco correndo sem sair do lugar. Exaurem-se, mas não encontram uma solução. A dramaturgia de Pedro Kosovski parte de lembranças e cicatrizes, costura as memórias da companhia paulista e do Brasil (não faltam alusões às repressões da ditadura).
Em meio às recordações, um acontecimento ressurge, contado uma dezena de vezes por diferentes atores. O fato, a briga de um integrante do Lume com os demais, é visto a cada momento por uma perspectiva, narrado de uma maneira diferente. É como se o elenco tentasse esmiuçar o ocorrido, entender as versões.
Mais do que dominar o discurso, é necessário aceitar as feridas, já sugere o nome do espetáculo —kintsugi é uma técnica de restauração de cerâmicas na qual as rachaduras não são disfarçadas, mas ressaltadas, pintadas de ouro. Afinal, como diz uma das personagens, este é o momento em precisamos tanto ouvir uns aos outros.