Folha de S.Paulo

A poesia das pequenas falas

‘Eduardo Coutinho me ensinou que o bom diretor é o que tem dois bons ouvidos’

- A obra que marcou Marcelo Gomes Diretor de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Joaquim”, lança o documentár­io “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar” em 11/7 Depoimento a Walter Porto

Dependendo do momento que vivemos, tem uma ou outra obra que nos toca mais. Agora, estou lançando meu primeiro documentár­io. Enquanto o executava, me lembrei muito de dois filmes que foram importante­s na minha vida, de dois diretores essenciais na minha formação enquanto pessoa, enquanto cineasta e enquanto documentar­ista.

O primeiro é “Edifício Master” (2002), de Eduardo Coutinho. Ali, o cineasta ensina a prática de escutar e de construir intimidade em pouco tempo. Aprendi que o bom diretor é aquele que tem os dois ouvidos bons.

Ele pega um edifício no bairro carioca de Copacabana, que é um microcosmo do Brasil, e faz com que ali você encontre o mundo. Todos os tipos de pessoas, pensamento­s e personalid­ades —senti algo parecido quando fui a Toritama (PE), cidade onde gravei meu novo filme, “Estou Me Guardando para Quando o Carnaval Chegar”. Há tanto uma dimensão afetiva quanto uma política, uma pessoal, uma social. Toda sessas camadas estãoprese­ntes naquele microunive­rso.

Fiquei realmente encantado quando vi “Edifício Master”; o que poderia ser apenas um documentár­io de entrevista­s se tornou algo muito mais potente. Transborda­va a simples ideia de um registro cinematogr­áfico do cotidiano daquelas pessoas: ali, ele definia até o próprio ato de Você fica entre Coutinho e as pessoas, distante e ao mesmo tempo próximo.

O filme tem uma verdade enorme, não filosófica, mas emocional. Não existem grandes tramas narrativas. É a poesia das pequenas falas, dos pequenos gestos e reflexões.

E, anos depois, eu descobri os “Diários” de David Perlov, um cineasta que nasceu no Rio, depois foi morar em Paris e em seguida, em Israel. Ele decide fazer uma visita ao passado e construir um diário íntimo da vida dele. Perlov usa a câmera como a escrita de poesia: mistura essa memorabili­a de todos os lugares onde viveu com o desejo de construir rimas cinematogr­áficas.

São dois mestres pelos quais sou fascinado, que foram importante­s não só para meu filme, mas para o modo como observo o mundo, como vejo o cotidiano e o fluxo do tempo. Aprendi a descobrir as emoções nos espaços públicos e privados que ambos frequentam.

Antes de mais nada, o que importa ao fazer um filme é a intuição e a instigação. Fazemos cinema para entender melhor a vida; para entender o outro e, assim, entender a nós mesmos. O cinema desses dois diretores é um exercício de alteridade.

Outra coisa que aprendi é que quero fazer filmes apenas sobre as coisas que eu não entendo. Só para dar um exemplo: quando cheguei a Toritama e vi todos aqueles outdoors no meio do agreste, achei que só um documentár­io daria conta de compreende­r aquilo tudo. Percebi que ali estava o momento de documentar minha própria vida, já que vivi naquela região durante momentos da minha infância, e a vida do outro, que poderia ser eu.

Cheguei a conhecer Coutinho em vida; ele sabia que era um mestre para mim, e tenho pena de ter falado com ele menos do que deveria. Tivemos apenas conversas esporádica­s, sempre muito boas. Ele acompanhav­a meus filmes, trocava às vezes confidênci­as comigo. Na nossa última conversa, me contou que estava fazendo um filme em que voltaria à procura dos personagen­s de “Cabra Marcado para Morrer” (1984).

Falou uma vez algo que nunca mais esqueci: “Marcelo, o cinema não salva ninguém.” Essa fala um pouco niilista, na verdade, me soou muito bonita —o cinema não precisa salvar ninguém mesmo, ele está aí para que vejamos as diferentes janelas desse mundo e possamos nos entender.

Por eu ter uma relação tão forte com o agreste, há um documentár­io de Coutinho que me toca tão profundame­nte que às vezes penso que só eu o entendo: chama-se “O Fim e o Princípio” (2005). Ele vai à cidade de São João do Rio do Peixe, na Paraíba, e começa a conversar com pessoas, todas velhas, sobre a vida.

O assunto maior é a morte, mas é um filme tão cheio de vida. Há uma compreensã­o profunda daquele mundo rural, aquela vida simples que é de profunda complexida­de. Aquelas pessoas dão conta de refletir sobre a vida de uma forma extremamen­te singular, com um senso de afeto, de honra, tão bonito e ético —de que estamos precisando muito no Brasil de hoje. Esse Brasil profundo que Coutinho capturou é o melhor que o Brasil tem.

 ?? Daniel Marenco - 20.nov.12/Folhapress ?? Coutinho durante entrevista à Folha, em 2012
Daniel Marenco - 20.nov.12/Folhapress Coutinho durante entrevista à Folha, em 2012

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil