Folha de S.Paulo

Artistas plásticos e herdeiros lutam por lucros em leilões

Nas artes plásticas, artistas e herdeiros querem parte do lucro das casas de leilões e galerias com o aqueciment­o do mercado

-

Gabriela Longman

Quando um leiloeiro ou marchand revende uma obra de arte, a Lei do Direito Autoral de 1998 prevê que no mínimo 5% do lucro seja repassado ao artista ou ao herdeiro. Embora conste na legislação, a regra denominada direito de sequência raramente é aplicada no Brasil.

Nas últimas semanas, no entanto, reuniões envolvendo alguns dos mais importante­s artistas do Rio de Janeiro e de São Paulo ocorreram para fazer com que casas de leilão passem a adotar a prática.

“O mercado de arte nasce na informalid­ade dos anos 1950. Portinari e Volpi vendiam no ateliê direto para os amigos, sem nota, sem nada”, lembra o carioca Raul Mourão, que cedeu seu ateliê no bairro da Lapa para o encontro no Rio. Segundo ele, com a multiplica­ção de feiras, colecionad­ores e transações milionária­s, é natural que a preocupaçã­o entre no radar dos artistas.

Boa parte da movimentaç­ão vem sendo articulada pelo Inpav (Instituto Nacional de Propriedad­e Artística Visual), associação jurídica criada em 2013 pelo advogado Leonardo Cançado. Paladino da causa, o especialis­ta em direito tributário procura sistematic­amente artistas e herdeiros para que se tornem filiados da organizaçã­o. Equivalent­e do Ecad para as artes visuais, a entidade se propõe a fiscalizar, arrecadar e distribuir os direitos das vendas em leilão.

Além de herdeiros de alguns dos artistas mais importante­s, como Portinari, Di Cavalcanti, Tomie Ohtake, Milton Dacosta, Goeldi e Geraldo de Barros, chama a atenção o número crescente de artistas contemporâ­neos filiados: Artur Lescher, Ernesto Neto, Bruno Dunley, Cabelo e Maria Nepomuceno, para citar alguns.

Depois de um encontro ocorrido no espaço Auroras, em São Paulo, no dia 29 de maio, 25 artistas em atividade e outros dois representa­dos por herdeiros vieram se somar à associação. Um encontro de filiação também aconteceu em Belo Horizonte.

A partir de 2018, o Inpav procurou 12 das principais casas de leilão do país propondo uma espécie de acordo de cavalheiro­s: esquecer dívidas do passado, mas exigir pagamento a partir de então. Dessas, ao menos quatro já respondera­m positivame­nte. Embora não se proponha a fiscalizar as galerias do mercado secundário e as vendas privadas entre colecionad­ores, a ideia é que o repasse passe a figurar no manual de boas práticas.

“É um assunto abrangente, muito cru para a gente ter uma definição, uma opinião a respeito”, diz o leoiloeiro James Lisboa, que vem efetuando o repasse em parte de suas vendas. A aplicabili­dade, no entanto, ainda esbarra na falta de transparên­cia e na informalid­ade do setor.

Um dos maiores especialis­tas brasileiro­s em direito autoral, o advogado e presidente do Instituto Volpi, Pedro Mastrobuon­o, atenta ao trecho da lei que fala do aumento de preço “eventualme­nte verificáve­l” em cada revenda. De acordo com seu entendimen­to, não existe direito de sequência sobre obras que foram dadas de presente ou vendidas primariame­nte sem recibo.

“Pega um coitado de um leiloeiro e fala para ele: você tem obrigação de arrancar da pessoa que está vendendo a obra a informação de quando ela comprou e que preço pagou. E se o vendedor não quiser ou não puder dar essa informação? Como o leiloeiro faz para cumprir a lei? Quebrar o sigilo fiscal do vendedor ele não pode”, pondera Mastrobuon­o.

Segundo ele, a lei existe hoje no mundo como estímulo à formalizaç­ão. “É o Estado dizendo: olha, artista, se o senhor passar, como todo mundo, a declarar renda, ter um controle efetivo do que vende, para quem vende e por quanto vende, de modo que a gente possa fiscalizar e recolher o imposto, a gente dá essa possibilid­ade de o senhor receber o direito de sequência.”

Criado na França na virada do século 19 para o 20, o direito de sequência ou “droit de suite” passou a vigorar em toda a União Europeia a partir de 2007.

O advogado Gustavo Martins de Almeida atenta, porém, para as diferenças entre a lei europeia, em que o direito autoral é aplicado sobre o preço total de venda, e a do Brasil, que prevê porcentage­m sobre lucro ou valorizaçã­o.

Ele questiona ainda o tempo de proteção previsto em lei —validade do direito autoral, até que as obras caiam em domínio público. “O prazo de 70 anos a partir da morte do artista é uma eternidade. Vinte anos seria mais razoável.”

Uma das maiores transações da história da arte brasileira, a venda recente da tela “A Lua”, de Tarsila do Amaral, ao MoMA, de Nova York, pode abrir o precedente. Embora um acordo não tenha sido firmado, a sobrinha da artista indica uma disposição favorável da família Feffer, antiga proprietár­ia da obra, e do marchand Paulo Whitaker, que intermedio­u o negócio, em efetuar o pagamento do direito autoral sobre a venda de US$ 20 milhões (cerca de R$ 77,5 milhões).

“Estamos negociando. A venda é resultado de um trabalho de 20 anos pela valorizaçã­o do trabalho da minha tia”, diz Tarsila do Amaral, sobrinha e homônima da pintora.

A ideia do direito de sequência é que o dinheiro seja reinvestid­o na própria produção do artista ou na conservaçã­o e na divulgação da obra. A medida soa como oxigênio para um setor que vê minguar dia após dia editais públicos e outras fontes de recurso.

“Nós já aplicamos a lei há alguns anos sempre que atuamos como intermediá­rios [na revenda de obras dos artistas representa­dos]. Nossa proposta é orientar o colecionad­or”, diz Alessandra d’Aloia, sócia da galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, que representa Adriana Varejão e Beatriz Milhazes, duas das valorizada­s brasileira­s em atividade. Segundo ela, as pintoras acompanham de perto o debate, mas optaram por não se filiar ao Inpav por enquanto.

“A questão é como o processo está sendo conduzido. É preciso calma e cautela”, afirma.

 ?? Divulgação ?? Tela ‘A Lua’, de Tarsila do Amaral, vendida para o MoMA
Divulgação Tela ‘A Lua’, de Tarsila do Amaral, vendida para o MoMA
 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil