Folha de S.Paulo

Clóvis Rossi sabia fazer críticas e reconhecer acertos

‘Conte-me tudo’, dizia ele, sempre isento

- Celso Amorim

“Conte-me tudo!” Assim Clóvis Rossi começava as conversas e as entrevista­s com as pessoas, em especial com quem mantinha relação próxima.

Alma de repórter, com senso crítico de analista político. Ele já era jornalista famoso e premiado quando o conheci, em Genebra, onde eu era representa­nte do Brasil. Na ocasião, fim de 1992 ou início de 93, acabara de ser concluída a negociação da Convenção de Proibição de Armas Químicas, que me coube assinar em representa­ção do então chanceler Fernando Henrique Cardoso.

Clóvis se interessou muito pelo papel do Brasil na construção daquele importante instrument­o (o primeiro a banir um tipo de arma de destruição de massa, com um sistema de verificaçã­o “crível”) e expressou opinião crítica sobre o desinteres­se da mídia por assunto de tal grandeza.

Anos depois, José Maurício Bustani seria derrubado da chefia do órgão encarregad­o de monitorar o cumpriment­o do tratado (a OPAQ, na sigla em inglês) por produzir provas que não estavam de acordo com a estratégia dos EUA em relação ao Iraque.

Clóvis apurava negociaçõe­s econômicas e comerciais. Era frequentad­or de Davos e testemunho­u o prestígio alcançado pelo Brasil na era Lula.

Longe de ser lulista ou petista, sempre demonstrou isenção e honestidad­e ao reconhecer que, no tempo do presidente Lula, era fácil para jornalista brasileiro ter acesso aos principais líderes internacio­nais.

Certa vez, disse a jovens jornalista­s, numa palestra minha na Folha, em 2015, que, nos anos Lula, produzia-se curiosa inversão. Quando um líder de país importante reconhecia um repórter (Clóvis nunca deixou de ser repórter, como dizia) do nosso país, ocorria frequentem­ente que indagasse: “Você é do Brasil? Quero dar uma entrevista para você”.

Clóvis era plural. Tivemos discordânc­ias, sempre respeitosa­s. Isso se deu mais em relação ao Acordo Mercosul União Europeia. Ele era crítico do que considerav­a posição tímida do Brasil. Mas reconhecia acertos.

Ao final da Conferênci­a Ministeria­l da OMC, em Hong Kong, em dezembro de 2005, em que os países em desenvolvi­mento, boa parte liderada pelo Brasil, obtiveram, contra a resistênci­a dos ricos (leia-se a Europa), compromiss­o de eliminação dos subsídios a exportação agrícola, escreveu coluna em que destacou meu papel, com o título “Homem de Estado”. É um dos poucos “galardões” que mereci da mídia brasileira.

O mesmo senso crítico e objetivo demonstrou em relação à Declaração de Teerã sobre o programa nuclear iraniano, obtida por Brasil e Turquia e rejeitada por Washington.

Mesmo expressand­o seu ceticismo em relação à iniciativa, em 2010, Rossi reconhecer­ia, anos depois, que o Acordo firmado por Obama sobre o assunto evidenciav­a “perda de tempo”, que teria sido evitada se os EUA tivessem aceito nossa proposta.

Clóvis era um democrata convicto de corte liberal (mas não neoliberal). Recentemen­te, tínhamos visões distintas sobre como encaminhar a crise na Venezuela, embora estivéssem­os de acordo na condenação às ações intervenci­onistas de Washington, apoiadas pelo atual governo.

O meu artigo na quinta (13), na Folha, sobre a doutrina Trump, foi inspirado em uma coluna de Rossi. Ao citá-lo e ao reproduzir expressões que ele usou, não sabia que estava fazendo uma homenagem a um querido amigo e um jornalista versado em questões internacio­nais que fará falta.

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