Folha de S.Paulo

Cibersegur­ança virou assunto nacional

Fatos dos últimos dias mostram complexida­de das relações entre governo e tecnologia

- Ronaldo Lemos Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro

Para além do choque das revelações do site jornalísti­co The Intercept Brasil, o país viveu dias atípicos na semana passada.

O debate sobre “cibersegur­ança” ganhou proporções nacionais. De mesas de bar a integrante­s do primeiro escalão dos três Poderes, houve muita gente conversand­o sobre assuntos como “hackers”, “criptograf­ia ponta a ponta”, “vazamentos” e “segurança da informação”.

Uma discussão desse tamanho sobre esse tema é rara no Brasil. Cibersegur­ança é um tema que sempre andou à deriva em nosso país. Já tivemos micos em 2018, quando planilhas foram publicadas na internet com senhas de sites administra­dos pela Presidênci­a da República. Em vários países ocupar cargos públicos leva à obrigação de abrir mão de diversas práticas de acesso à rede, inclusive abandonar o uso de smartphone­s convencion­ais.

No Brasil, o fato é que praticamen­te todos os integrante­s da administra­ção pública se sentem muito confortáve­is em manter seus hábitos “normais” na internet, mesmo quando têm de lidar com questões de segurança nacional.

Essa conduta é negligente. A Electronic Frontier Foundation (EFF), instituiçã­o que trata de temas como direitos e privacidad­e na rede, divulga com frequência um balanço sobre cibersegur­ança na rede. Chegou a publicar uma tabela com os principais aplicativo­s de mensagens, apontando quais seriam suas falhas de segurança. O Telegram é notoriamen­te um aplicativo que tem diversas vulnerabil­idades.

Entre as três falhas que foram apontadas sobre o app pela EFF no momento em que a tabela foi realizada, estão: o aplicativo não utiliza criptograf­ia, de modo que a própria plataforma pode ler as mensagens; não há mecanismos de verificaçã­o de identidade dos contatos; as comunicaçõ­es passadas não estarão seguras se as chaves que as protegem forem roubadas. Essas falhas só não se aplicam na modalidade “chat secreto” do Telegram, que precisa ser acionada ativamente pelo usuário para funcionar.

Em outras palavras, quem usa o Telegram assume o risco de ter comunicaçõ­es sensíveis intercepta­das ou vazadas na rede. Saber que esse aplicativo tem falhas não é uma informação “secreta”. Qualquer busca na internet feita por leigo aponta claramente as deficiênci­as do aplicativo e os riscos que se corre do ponto de segurança da informação ao ser utilizado.

Para além das questões técnicas, os fatos dos últimos dias mostram a complexida­de das relações entre governo e tecnologia no mundo atual.

Já falei aqui na coluna que “quem governa por redes sociais acaba sendo governado por elas”. Mais do que isso, fica claro também que “quem julga por redes sociais acaba sendo julgado por elas”.

Essas duas constataçõ­es derivam diretament­e da lição que Marshall McLuhan postulou já nos anos 1960, da seguinte forma: “As sociedades são moldadas muito mais pela natureza das mídias que as pessoas usam para se comunicar do que pelo conteúdo dessas comunicaçõ­es”.

Em outras palavras, as ferramenta­s que usamos para exercer controle também nos controlam. Mais do que nunca, o cachimbo entorta a boca. E, para citar outra lição de McLuhan: “Tudo o que um político mais gostaria de fazer é abdicar em favor de sua imagem, pois a imagem é sempre mais forte do que ele jamais poderia ser”.

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