Casos de crianças imigrantes presas guiam romance de mexicana
Valeria Luiselli mescla detenções com o fim de um casamento para criar trama sobre a impossibilidade de um futuro
A escritora mexicana Valeria Luiselli, 35, já havia se sentido tocada pela história das crianças que cruzam ilegalmente a fronteira entre México e Estados Unidos. Tanto que, a partir de uma investigação sobre o tema, acabou tão envolvida que fez um trabalho voluntário de tradução para ajudar em seus casos judiciais e escreveu o ensaio “Los Niños Perdidos”, em 2016 (ed. Sexto Piso, importado).
“Enquanto vivia essa experiência, guardava ideias, paisagens, episódios que eu achava que dariam um romance depois; o resultado é este”, conta Luiselli à Folha, por telefone, desde Nova York, onde vive.
O livro de que falamos é “Arquivo das Crianças Perdidas”, que acaba de sair no Brasil. Luiselli, que já esteve na Flip, em 2016, conta que a questão da imigração, por si só, já é um tema para ela, por ser uma mexicana que vive nos EUA —onde estudou literatura na Universidade Colúmbia e dá aulas— e há tempos pensa a questão do exílio. E porque vem acompanhando as diversas políticas de governos americanos com relação ao tema.
“Não sou otimista quanto à atual crise imigratória, acho que só vai piorar. Trump sabe que pode pressionar o México de muitas maneiras. Por outro lado, a gestão anterior do México (de Enrique Peña Nieto) já deportava centro-americanos, e AMLO vai deportar ainda mais, apesar de ter prometido outra abordagem do tema.”
Luiselli se refere ao atual presidente do México, o esquerdista Andrés Manuel López Obrador (conhecido como AMLO), que a princípio defendia uma abordagem mais “humanista” em relação ao fluxo de imigrantes que fogem da crise humanitária da América Central.
No romance, essas questões são apenas o pano de fundo. Temos uma família viajando desde Nova York até a fronteira, com a ideia de visitar o território onde os apaches um dia viveram. O casal está em crise.
Ambos haviam se conhecido ao realizarem um projeto juntos em Nova York—um mapa sonoro da cidade, para realizar uma espécie de arquivo sobre o tempo em que viveram ali. Agora, parece não haver mais sintonia entre eles.
O formato é o de uma road trip, tão tradicional na literatura americana. “Me inspirei nos relatos de Jack Kerouac e no imaginário da corrida pelo ouro no século 19, mas quis também introduzir elementos da literatura de viagem latino-americana.”
A ideia de lidar com personagens cujo trabalho é registrar sons a seduziu porque “uma trilha não pode ser abandonada, é um caminho em que não se pode perder o fio da meada, como no romance”.
Luiselli também considera o livro um vínculo com sua própria linhagem familiar, uma vez que sua mãe viajou a Chiapas em plena crise entre indígenas e governo, nos anos 1990, para fazer um trabalho de apoio a essa população. Já sua bisavó era indígena, de Pachuca. Portanto, Luiselli se sente tocada por temas que envolvem minorias e direitos humanos, tanto em seu país de origem quanto naquele que escolheu para viver.
Joca Reiners Terron
Um casal em crise acompanhado dos filhos de casamentos anteriores (o menino é dele; a menina, dela), zarpa numa jornada peripatética sobre quatro rodas pelos estados dos Estados Unidos que um dia pertenceram ao México, e antes, aos povos originários que viviam na região.
Vão de férias, mas não são “férias normais”. Os adultos, como de costume, têm seus segredos. Já as crianças sofrem de ávida curiosidade. Até aqui, tudo normal em “Arquivo das Crianças Perdidas”, de Valeria Luiselli.
O marido é uma espécie de historiador sonoro: registra sons cotidianos para a posteridade. Ela, jornalista, é a narradora, mas nem sempre. Ambos se conheceram num projeto dedicado a documentar a paisagem sonora de Nova York, onde vivem, especificamente as mais de 800 línguas faladas na metrópole. Ao gravar a única falante de um dialeto indígena mexicano, ela descobre que os filhos da entrevistada estão presos num campo de detenção para crianças imigrantes no Texas.
Ele quer ir ao Arizona pesquisar os Apaches, último povo a sucumbir ao genocídio colonialista. Mas talvez seja desculpa para salvar o casamento. Ela quer salvar as crianças imigrantes, ou ao menos contar sua história num documentário, porém não se sente à altura da tarefa.
Dessa hesitação ética, entre desejar escrever e ao mesmo tempo não se sentir autorizada a isso, surge o romance de Luiselli. Assim, a narradora, que em muitos pontos coincide com a própria autora, não se exime de expor o desconforto com seu lugar de fala.
Nesse (e noutros) sentidos, é hiperconsciente da responsabilidade política de explorar a crise migratória alvejada pela administração Trump sem estar na mesma situação que as vítimas. Mas sua preocupação não se resume a isso.
Luiselli, exímia ensaísta (fato raro, ela estreou com um livro de ensaios, “Papeles Falsos”, em 2010), resgata o princípio de tentativa e erro que mora no coração desse gênero. Ao adotar como mote a inconstância da viagem e da paisagem —humana e geográfica— à medida que a família se move, as considerações da narradora exploram os reflexos, apropriadamente tratados como ecos, do estilhaçamento social na vida de uma família em vias de acabar.
Mas não é só isso: em sua estrutura de arquivo, com capítulos que exploram o conteúdo das caixas que estão no bagageiro do carro, esse notável romance opera consciente e permanentemente em estado de dúvida.
Afinal, como documentar o presente diante da impossibilidade de um futuro? Essa é a pergunta de um milhão de dólares de toda uma geração de crianças perdidas.