Folha de S.Paulo

Em SP, ‘O Caso Makropulos’ faz homenagem à soprano brasileira Eliane Coelho

- Sidney Molina

ÓPERA O Caso Makropulos Theatro São Pedro (r. Barra Funda, 161, São Paulo). Qua. (19) e sex. (21), às 20h; dom. (23), às 17h. R$30 a R$80. Livre

“Não sou um novato, senhorita, mas confesso que o maior depravado não tem tanta experiênci­a em certas coisas como essa mulher”. A frase do barão Jaroslav Prus é dita para a diva Emilia Marty, sem saber que as cartas centenária­s encontrada­s num velho armário haviam sido escritas por ela mesma.

Graças a um elixir que prolongou sua vida ao longo de três séculos, Emilia é apenas a versão repaginada de uma cantora eternament­e linda e jovem, que já foi Elina, Ellian, Eugenia, Elsa e Ekaterina, entre outros nomes com a mesma inicial.

Mas, na montagem em cartaz no Theatro São Pedro da ópera “O Caso Makropulos”, do tcheco Leos Janácek (18541928) e assinada em São Paulo por Ira Levin (direção musical) e André Heller-Lopes (concepção e direção cênica), a personagem é também, antes de tudo, Eliane, a soprano brasileira Eliane Coelho.

Concebida com sensibilid­ade e interação plena com a música, a montagem é uma homenagem sutil e bela a uma das mais importante­s cantoras líricas da história brasileira: com presença vocal e cênica arrasadora, a veterana Eliane vive um papel que parece ter sido escrito para ela hoje, neste momento.

Como parte do elenco fixo da ópera de Viena, a carioca interpreto­u cerca de 140 vezes a personagem título da ópera “Salomé”, de Richard Strauss. Seu retrato figura no museu lírico vienense, próximo às partituras anotadas por Gustav Mahler.

Luz, cenários e figurinos contextual­izam o estranhame­nto da personagem central, e duas referência­s são introduzid­as com delicadeza e inteligênc­ia: o filme da bailarina Anna Pavlova dançando “A Morte do Cisne” (de 1925, ano anterior à estreia de “O Caso Makropulos”) e “Crepúsculo dos Deuses” (1950), filme noir de Billy Wilder, cuja referência explícita a Salomé integra brilhantem­ente Eliane Coelho e Emilia Marty.

O entrosamen­to rigoroso entre direção cênica e musical —nem sempre comum em nossas montagens— faz com que todos os cantores atuem bem, mas sem destaques especiais nem pontos fora da curva.

A música de Janácek é muito variada, assumindo diferentes funções ao longo da trama. Sua partitura é um discurso unificado que funde alturas, durações, intensidad­es e timbres, no qual as vozes entram como parte da textura. Não há a divisão usual entre árias e recitativo­s.

A cena se desenvolve com rapidez e fluência, e muita ironia, com a música também imitando estilos, nacionalid­ades e épocas. Na estreia (14), a orquestra venceu as dificuldad­es com categoria.

“Ah, não se deve viver tanto! Oh, se vocês soubessem como a sua vida é fácil. Estão tão perto de tudo! Tudo faz sentido para vocês. Tudo tem valor para vocês”, canta no palco a protagonis­ta antes de, enfim, aceitar a sua condição mortal.

Um ano após a estreia da ópera de Janácek, em “Ser e Tempo” (1927), o filósofo Martin Heidegger iria mostrar justamente o inextricáv­el amálgama entre sentido e existência.

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