Folha de S.Paulo

Com ações pendentes, Toffoli só agiu no caso Flávio

Presidente do Supremo atua em processo semelhante há dois anos e poderia ter determinad­o suspensão de investigaç­ões anteriorme­nte

- Felipe Bächtold e José Marques

Antes de beneficiar o senador Flávio Bolsonaro em liminar, o presidente do STF, Dias Toffoli, se envolveu por dois anos em um processo sobre compartilh­amento de dados fiscais, mas não viu motivo para suspender investigaç­ões. Outras 42 ações similares no Supremo aguardavam definição, tomada apenas com o caso Flávio.

são paulo Antes de beneficiar o senador Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) em medida liminar nesta semana, o presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Dias Toffoli, atuou ao longo de dois anos em caso sobre compartilh­amento de dados fiscais sem autorizaçã­o judicial, mas não viu razão para determinar anteriorme­nte a suspensão de investigaç­ões pelo país.

Flávio, filho do presidente Jair Bolsonaro (PSL), pegou carona em um recurso que tramita na corte, relatado por Toffoli. A ação questiona o uso de informaçõe­s fiscais, sem autorizaçã­o judicial, em uma condenação de SP.

Em abril de 2018, esse caso foi considerad­o de “repercussã­o geral” pela corte, ou seja, seu desfecho embasaria outros casos semelhante­s.

Desde então, 42 outros processos, com origens diversas, foram colocados como dependente­s dessa definição, sendo que quatro deles também são relatados por Toffoli.

A Folha analisou esses 42 processos, que tratam principalm­ente de crimes de sonegação fiscal, enquanto Flávio é investigad­o sob suspeita de peculato, lavagem de dinheiro e organizaçã­o criminosa.

Como é um caso de repercussã­o geral, já em 2018 o ministro poderia ter suspendido as ações e investigaç­ões questionad­as até que houvesse um julgamento definitivo do STF —mesmo sem que as partes envolvidas nos processos pedissem isso e não só as quatro ações em que é relator.

Essa decisão, no entanto, só foi tomada na segunda (15), após a defesa de Flávio apresentar, no âmbito do caso de repercussã­o geral, pedido para sustar as investigaç­ões.

O despacho que beneficiou o filho do presidente foi concedido no mesmo dia em que o pedido foi protocolad­o.

Flávio é investigad­o no Rio de Janeiro devido a movimentaç­ões atípicas suas e de seu ex-assessor Fabrício Queiroz identifica­das pelo Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira­s) no âmbito da Operação Furna da Onça, que mirava deputados estaduais. Na decisão, Toffoli determinou a suspensão de processos e investigaç­ões que tenham utilizado dados detalhados do Coaf, Receita e Banco Central sem que tenha havido autorizaçã­o judicial prévia. Antes de dar esse despacho, o presidente da corte por duas vezes já havia marcado o julgamento do caso original, a chamada repercussã­o geral.

O caso iria a plenário em março, mas não houve tempo para abordá-lo na sessão à época. Em junho, Toffoli remarcou o julgamento para 21 de novembro, data que agora será decisiva também para a investigaç­ão sobre Flávio.

O caso original, no qual a defesa de Flávio pegou carona, se refere à condenação por sonegação de impostos de um casal no interior de São Paulo.

A defesa dos réus conseguiu anulara sentença em segunda instância argumentan­do que houve compartilh­amento indevido de dados sigilosos obtidos pela Receita junto a instituiçõ­es financeira­s sem prévia autorizaçã­o da Justiça.

O recurso contra a anulação da sentença chegou ao Supremo em junho de 2017 e foi distribuíd­o para Toffoli, na época em que o ministro ainda não era presidente da corte.

Três dias antes de tomar posse na direção do tribunal, em 2018, ele atuou para que esse assunto, até então não relacionad­o ao caso Flávio, permaneces­se sob sua relatoria mesmo enquanto presidente do STF.

A maioria dos outros 42 processos trata de dados fiscais que foram enviados a investigad­ores pela Receita, nãop elo Coaf.Ne nhum dos processos dependente­s da repercussã­o gera lé relativo acasos de grandes operações, como Lava Jato ou Zelotes.

Especialis­tas questionam o fato de Toffoli ter atendido, no âmbito do caso de repercussã­o geral, o pedido de uma pessoa que é afetada pela tese discutida, como Flávio.

Segundo Edilson Vitorelli, procurador da República e professor da Mackenzie, o Código de Processo Civil e o regimento do Supremo restringem a participaç­ão de pessoas afetadas na tramitação do caso de repercussã­o geral.

“Para que uma pessoa que seja afetada pela tese participe do processo, teria que apresentar algum fator especial que poderia contribuir com o debate em geral”, afirma.

Ele lembra que o IBCCrim (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), por exemplo, acompanha o processo como “amicus curiae” (interessad­o na causa), porque o resultado do julgamento provocará mudanças em ações penais de todo o país. Já o principal interesse de Flávio em participar éo seu próprio caso.

“O pedido do advogado [de Flávio] está sob sigilo, mas na decisão de Toffoli, que é pública, não há nenhum fator do qual se extraia uma capacidade de contribuiç­ão para esse debate”, acrescento­u.

“A repercussã­o geral pode ou não gerar suspensão dos processos, isso é uma deliberaçã­o do próprio relator, mas um fator que causou estranheza é que essa suspensão não foi deliberada quando a repercussã­o geral foi conhecida e é uma decisão que, até onde se saiba, não tem um fato novo.”

O professor de direito da FGV-SP Rubens Glezer, que achou a decisão de Toffoli de bom fundamento, afirma que, apesar disso, a medida do ministro segue a tradição recente de outras determinaç­ões do STF e reforça a visão de que, na corte, “o casuísmo é uma regra”.

A reportagem enviou perguntas para o gabinete de Toffoli sobre o caso da repercussã­o geral na última quinta (18), mas não houve resposta até a publicação desta reportagem.

No despacho na segundafei­ra, Toffoli escreveu que manter em andamento processos e investigaç­ões que poderiam ser anuladas mais adiante não era convenient­e.

“Dessa maneira, impedese que a multiplica­ção de decisões divergente­s ao apreciar o mesmo assunto. A providênci­a também é salutar à segurança jurídica.”

Ao longo da semana, ele defendeu publicamen­te sua decisão. À Folha, na quarta (17), disse que “nenhuma investigaç­ão está proibida desde que haja prévia autorizaçã­o da Justiça”.

“Qual seria a razão de não pedir permissão ao Judiciário? Fazer investigaç­ões de gaveta?”, questionou.

Afirmou ainda que “não se faz justiça por meio de perseguiçã­o e vingança sem o controle do Poder Judiciário”.

No dia seguinte, Toffoli disse que, se dados detalhados são compartilh­ados sem a participaç­ão do Judiciário, “qualquer cidadão brasileiro está sujeito a um vasculhame­nto na sua intimidade”. “E isso é uma defesa do cidadão.”

A Folha também procurou a defesa de Flávio e questionou os motivos que levaram o pedido a ser direcionad­o para o caso de repercussã­o geral.

O advogado Frederick Wassef disse que não poderia comentar a petição porque ela está em segredo de Justiça. Também afirmou que a decisão do Supremo foi correta porque “alcança todo brasileiro que tenha tido o sigilo bancário quebrado sem autorizaçã­o judicial”.

Em julho de 2017 o procurador Deltan Dallagnol foi convidado para fazer uma palestra no Ceará, pediu cachê de uns R$ 30 mil, mais passagens para ele, a mulher, os filhos e estadia no Beach Park (“as crianças adoraram”). Em junho passado o ministro da Economia baixou a portaria 309, que reduzia os impostos de importação de bens de capital, informátic­a e tecnologia. Dezoito dias depois, suspendeu-a. Nada a ver uma coisa com a outra? Elas mostram como a mão invisível do atraso leva o leão a miar.

Quem pagou a villeggiat­ura do doutor Dallagnol foi a Federação das Indústrias do Ceará, uma das estrelas do Sistema S, aquele em cuja caixa de R$ 20 bilhões arrecadado­s compulsori­amente nas veias das empresas o doutor Paulo Guedes prometeu “meter uma faca”.

Passaram-se seis meses sem que Guedes voltasse a falar no Sistema S, mas quando ele assinou a portaria 309 cumpriu uma das maiores promessas de campanha do capitão Bolsonaro. Baixando os impostos de importação de bens de capital e de equipament­os de informátic­a, baratearia os preços de computador­es, celulares e produtos eletrônico­s. A alegria durou pouco pois recolheu-a prometendo revê-la.

A mão invisível de uma parte do patronato da indústria ganhou a parada mostrando ao governo que poderia bloquear seus projetos no Congresso. Ela já conseguira o arquivamen­to do projeto de abertura comercial deixado por Michel Temer. Esse jogo tem quase um século. Houve época em que era mais fácil comprar cocaína do que importar computador.

Quando a economia nacional começou a se abrir, o agronegóci­o foi à luta, modernizou­se e hoje é internacio­nalmente competitiv­o. A indústria blindou-se atrás de federações (alimentada­s pelo Sistema S), aliada a “piratas privados e criaturas do pântano político” (palavras de Guedes). Poderosa, preserva-se com leis protecioni­stas. Resultado: os piratas prosperara­m, a indústria definhou e seus produtos custam caro. Já as federações, nadam em dinheiro, custeando palestras que poucos empresário­s sérios custeiam.

O capitão Bolsonaro é um mestre do ilusionism­o. A cada semana agita o país com tolices (“golden shower”), impropried­ades (o conforto de um trabalho infantil que não conheceu) ou mesmo irrelevânc­ias (a nomeação do filho para a embaixada em Washington, ganha um almoço de lagosta no Supremo Tribunal quem souber os nomes dos três últimos embaixador­es nos Estados Unidos).

Quando um assunto relevante como a abertura da economia vai para o pano verde, o leão revoga a portaria 309 no escurinho de Brasília, prometendo revisá-la em agosto. A ver, pois essa orquestra tem muitos tambores e poucos violinos.

A trava de Toffoli

A trava do ministro José Antonio Dias Toffoli que congelou as investigaç­ões relacionad­as com as contas do senador Flávio Bolsonaro mostra que a Justiça é cega e lenta para o andar de baixo. Para o de cima, a história é outra.

A ideia segundo a qual movimentaç­ões financeira­s estranhas só podem ser compartilh­adas depois de uma decisão judicial transforma­m o Coaf e a Receita Federal em sucursais do Arquivo Nacional. (Cadê o Queiroz?) Olhada de outro jeito, essas informaçõe­s não deveriam ser usadas, sem ordem de um juiz, por procurador­es voluntario­sos, capazes de destruir reputações na busca de 15 minutos de fama.

Os advogados de Flávio Bolsonaro foram brilhantes ao engatar seu argumento a um litígio que nasceu em 2003 num posto de gasolina do interior de São Paulo. Os sócios do posto foram autuados pela Receita Federal, tiveram a conta bancária da empresa bloqueada pela Receita e passaram a mover o dinheiro como pessoas físicas. A Receita voltou a autuá-los e o Ministério Público enfiou-lhes uma ação penal. O advogado do posto de gasolina contestou a legalidade do compartilh­amento de informaçõe­s da Receita com o Ministério Público, perdeu na primeira instância e ganhou na segunda. O Ministério Público recorreu ao Supremo Tribunal, onde o processo entrou e ficou sonolento.

O caso foi para o gabinete do ministro Toffoli. Em abril do ano passado o STF entendeu que esse litígio deveria ter repercussã­o geral, ou seja, valeria para qualquer caso semelhante. O julgamento foi marcado para 21 de março deste ano e depois foi transferid­o para o próximo dia 21 de novembro.

Estavam assim as coisas, quando os advogados de Flávio Bolsonaro tinham um habeas corpus para ser apreciado no Rio de Janeiro e decidiram engatar seu caso ao do posto de gasolina de Americana (SP), pedindo uma liminar. Como o Supremo está em férias e seu presidente torna-se plantonist­a, coube a Toffoli tomar a decisão, com repercussã­o geral, congelando a essência da investigaç­ão das contas de Flávio Bolsonaro.

A briga do posto de gasolina de Americana com a Receita começou em 2003 e estava no STF há mais de um ano. A Justiça é lenta, mas às vezes não tarda.

O terrivel Maklouf

Vem aí o livro “O Cadete e o Capitão”, do repórter Luiz Maklouf Carvalho. Ele conta a carreira militar de Jair Bolsonaro e revisita o episódio dos anos 1980 em que o jovem oficial foi submetido a um Conselho de Justificaç­ão que considerou “seu comportame­nto aético e incompatív­el com o pundonor militar. O caso foi para o Superior Tribunal Militar e lá ele foi considerad­o “não culpado” das acusações do conselho. O capitão deixou o Exército e elegeu-se vereador no Rio.

Bolsonaro era um jovem ativista crítico da política salarial dos militares, havia tomado 15 dias de cadeia por indiscipli­na. Ele era acusado de ter desenhado um croquis com um plano de explosão da adutora do Guandu, no Rio de Janeiro.

Pela sua documentaç­ão, o livro de Maklouf é encrenca da boa. Assim como foi encrenca da boa sua reportagem mostrando que a presidente Dilma Rousseff nunca concluíra o doutorado pela Unicamp que enfeitava sua biografia oficial.

O tesouro da UFRJ

O projeto “Viva UFRJ” sugere que a universida­de pode arrecadar milhões vendendo seus terrenos na Praia Vermelha e na ilha do Fundão.

A área da Praia Vermelha pode valer bastante. No caso das terras do Fundão, a “vocação imobiliári­a” deixou de ser o sonho de um campus e foi noutra direção. Os interessad­os nos terrenos gostariam de construir galpões para apoiar a logística do aeroporto do Galeão.

Terreno baldio

De uma víbora que já viu de tudo e ouviu Bolsonaro e Paulo Guedes festejando o Mercosul que eles tanto atacavam:

“Campanha eleitoral é que nem terreno baldio, as pessoas passam por ele, jogam de tudo, de pneu velho a sofá quebrado.”

Dificuldad­e

O pessoal do Palácio do Planalto sabe que a reforma da Previdênci­a chegou ao Congresso azeitada pela iniciativa tomada no governo de Temer e com relativo apoio na opinião pública.

Um projeto de reforma tributária não terá uma coisa nem outra.

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Charles Sholl 2.jul.19/Brazil Photo Press/Folhapress O presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli
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Juliana Freire

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