‘Chernobyl’ irradia Série pode repetir feito de ‘Holocausto’, que desvendou trauma histórico
Autora argumenta que “Chernobyl” tem chance de replicar feito inaugurado pela série “Holocausto”, de 1978, que abalou o modo como o mundo enxergava o massacre étnico promovido pelos nazistas e deu origem a uma espécie de “era da testemunha”. A minissérie da HBO, favorita ao Emmy, poderá adensar o debate sobre catástrofes ambientais
Quando foi ao ar pela primeira vez em abril de 1978, os criadores da série norte-americana “Holocausto” não poderiam imaginar o impacto que a obra teria nos Estados Unidos e na Europa.
Dirigida por Marvin Chomsky e escrita por Gerald Green, que posteriormente a transformou num romance, a série veiculada pelo canal de televisão NBC foi vista por 120 milhões de telespectadores só nos EUA. No ano seguinte, o sucesso desembarcou na Alemanha Ocidental, onde, estima-se, 20 milhões de pessoas (quase 40% da população alemã da época) assistiram às nove horas e meia de duração da obra, dividida em quatro capítulos.
A repercussão foi tão grande que, antes mesmo da exibição do primeiro capítulo, Peter Naumann, membro da extrema direita alemã com um vasto currículo de atividades terroristas, explodiu duas torres de televisão para impedir a transmissão, privando 100 mil alemães do destino trágico da família Weiss.
Se nos Estados Unidos e na Alemanha a série causou comoção nacional, retirando da invisibilidade e do relativo silêncio um evento histórico decisivo para o século 20 — até aquele momento ainda pouco presente no debate público norteamericano e europeu—, as reações críticas foram também eloquentes.
Elie Wiesel, sobrevivente da destruição em massa dos judeus europeus, radicado nos EUA desde os anos 1950, reagiu severamente em artigo no jornal The New York Times, considerando a série “irreal, ofensiva e barata”. Para o autor da obra testemunhal “A Noite”, assim como para vários outros sobreviventes, aquela “ópera kitsch” banalizaria e trivializaria o acontecimento histórico, transformando-o numa novela: o Holocausto seria a partir de então “medido e julgado pela produção de TV que leva seu nome”.
Mas o que aconteceu foi mais do que isso. Wiesel não poderia prever que a própria série faria a palavra Holocausto, até então pouco empregada, com conotação religiosa e sacrificial, entrar definitivamente no vocabulário mundial.
Cruzando o destino de duas famílias alemãs, uma nazista, a Dorf, e outra judia, a Weiss, “Holocausto” personalizava a Shoah (termo hebraico que significa desastre, catástrofe, destruição), dando um rosto humano ao genocídio através de um núcleo familiar “típico”, que encarnava o destino do judaísmo alemão.
De acordo com a historiadora francesa Annette Wieviorka, em seu livro seminal “L’Ère du Témoin” (“a era da testemunha”, infelizmente até hoje não traduzido no Brasil), a série teve nos Estados Unidos o mesmo efeito que o processo Eichmann provocou em Israel no início dos anos 1960: disparar nos sobreviventes um desejo ardente, e bastante novo, de testemunhar e narrar o que fora vivido nos campos de extermínio.
Atitude não muito frequente até então, já que o silêncio, a vergonha e a culpa daqueles que voltaram dos campos da morte predominaram mesmo após décadas desde o fim da Segunda Guerra. O testemunho ganha um estatuto novo e passa a ocupar um lugar central no espaço público.
Para Wieviorka, na sequência das emoções e controvérsias que se seguiram nos EUA, na Alemanha e na França, uma mutação sem precedentes se realiza. A série “Holocausto” torna-se disparadora de uma nova “paisagem memorial”, onde se combinam diversos elementos: a mudança da imagem do sobrevivente, a mutação da identidade judaica e os usos políticos do genocídio.
Não por acaso, fazendo parte dessa nova paisagem da memória, arquivos públicos e privados começam a ser criados no início dos anos 1980 para recolher, sob a forma de vídeos, os testemunhos daqueles que os norte-americanos chamariam dali em diante de “sobreviventes”.
Declaradamente impactado pela série, o presidente Jimmy Carter (que governou os EUA de 1977 a 1981) deu início ao processo de criação de um museu nacional dedicado ao Holocausto, que viria a ser fundado em 1993 como United States Holocaust Memorial Museum. Com essa instituição iniciava-se uma nova forma de pedagogia, transmissão e “americanização” do genocídio, marcado agora pela ideia de sobrevivência e superação.
No ano seguinte, Steven Spielberg, como desdobramento de seu “A Lista de Schindler” (1993), cria a Survivors of the Shoah Visual History Foundation (fundação de história visual dos sobreviventes da Shoah), mudando a escala — agora global— da coleta de testemunhos. Para se ter uma ideia, em 1995, a fundação Spielberg já havia recolhido nos EUA, na Europa, na África do Sul e em Israel quase 20 mil testemunhos em vídeo.
Já na Alemanha Ocidental, o impacto da série foi imediato, levando o Parlamento a revogar o estatuto que limitava a acusação de crimes de guerra. Como comentou recentemente o diretor Marvin Chomsky, essa foi talvez a primeira vez que “uma nação promulgou uma lei diretamente afetada pela exibição e pela resposta a um programa de televisão”.
Com a mudança, as autoridades alemãs passaram a investigar e processar criminosos de guerra nazistas, enquanto os jovens do país, em um processo de internalização do alcance e do horror do Holocausto, começaram a inquirir seus pais e vizinhos, promovendo um verdadeiro acerto de contas histórico.
A série foi reexibida neste ano na Alemanha, em seu 40º aniversário e num contexto de crescente antissemitismo e negacionismo histórico. O jornal Der Spiegel comentou que uma trivial série de TV americana conseguira fazer no final dos anos 1970 o que centenas de livros, peças, filmes e documentários sobre os campos de concentração não haviam conseguido em três décadas de pós-guerra: “informar os alemães sobre os crimes cometidos em seus nomes”.
Ahistória da repercussão da série “Holocausto” é fascinante e radical, levando à pergunta: face a um contexto global de disputa pela verdade, manipulação da informação, revisionismo histórico, recrudescimento do autoritarismo e formas diversas de violência de Estado, o que podem o cinema e as séries de televisão? A resposta não é simples nem direta, mas, como se vê, seu escrutínio faz-se necessário.
Criada pelo roteirista norte-americano Craig Mazin, produzida pela HBO e exibida originalmente de 6 de maio a 3 de junho, a minissérie de televisão “Chernobyl” (que segue disponível no HBO Go) foi recebida pelo mundo com estrondoso sucesso de público e da crítica especializada. Na última terça (16), foi a minissérie com mais indicações ao Emmy, principal prêmio da TV americana, concorrendo a 19 troféus. Na trilha de sua antecessora “Holocausto”, “Chernobyl” atualiza a questão que o cinema moderno vem colocando.
Há décadas, esse cinema do pósguerra, que também poderíamos chamar de “o cinema de depois dos campos”, tem diligentemente trabalhado e elaborado narrativas, nos âmbitos da ficção, do documentário e do ensaio, a respeito das consequências históricas e sequelas psíquicas da sucessão de violências e desastres que marcaram sem trégua o século 20 e continuam a incidir arrasadoramente sobre o 21.
Recolhendo depoimentos, reencenando momentos traumáticos, reconstituindo contextos políticos autoritários e construindo verdadeiros arquivos audiovisuais, o cinema e a televisão puderam no século passado criar uma paisagem mnemônica indelével, participando ativamente das dinâmicas políticas, culturais e sociais e antecipando-se, muitas vezes, ao trabalho dos historiadores.
Inventor de mundos e testemunha de uma sociedade marcada pela catástrofe, o audiovisual contemporâneo tem, cada vez mais, tentado formular respostas ao seu papel face à violência exercida por Estado e instituições. Evidentemente,
A série ‘Holocausto’ teve nos EUA o mesmo efeito que o processo Eichmann provocou em Israel nos anos 1960: disparar nos sobreviventes um desejo ardente, e bastante novo, de testemunhar e narrar o que fora vivido nos campos de extermínio