Brexit consolida ascensão do provável premiê Boris Johnson
Na terça (23), votação deve alçar polemista a líder do Partido Conservador e premiê
Polemista e grande fiador da separação britânica da União Europeia, Boris Johnson, ex-prefeito de Londres, é favorito para se tornar, em votação nesta terça-feira, o novo líder do Partido Conservador —e, por extensão, próximo primeiro-ministro do Reino Unido.
A horas tantas de um discurso para 2.000 membros do Partido Conservador, na última quarta (17), em Londres, Boris Johnson, 55, agachou-se atrás do púlpito para apanhar um arenque defumado embalado a vácuo. Segundos depois, sacaria do mesmo esconderijo um saquinho de gelo, para risos desconcertados da plateia.
A cena cristaliza os traços que fazem vibrar admiradores e estrilar críticos do favorito para se tornar o novo líder de sua legenda —e, por extensão, o próximo primeiro-ministro do Reino Unido. O anúncio do escolhido será feito na terça (23).
O ex-prefeito da capital inglesa é dado à galhofa, quer tirar os britânicos da União Europeia (UE) o quanto antes (custe o que custar, “do or die”, em suas palavras) e, apesar da experiência como jornalista, não se inibe em “moldar” fatos segundo lhe convém.
O peixe brandido nos ares era parte de um “número” de Johnson, que não raro lembra um comediante de stand-up, para atacar a suposta arbitrariedade das leis de segurança alimentar na UE. Ao impor a colocação de “travesseiros” de gelo nos lotes voltados à exportação, segundo ele, a governança europeia aumentou os custos de produção para o setor pesqueiro britânico.
Ocorre que a legislação do bloco não possui nenhuma provisão nesse sentido. Se o arenque bate queixo em contêineres polares, seu algoz são as regras britânicas.
A lorota, deliberada ou não, passa incólume pelo público daquela noite, formado por filiados ao Partido Conservador —no país, há cerca de 160 mil (0,3% do eleitorado total), e são eles que vão definir o substituto de Theresa May.
A (ainda) líder conservadora e chefe de governo, no posto desde julho de 2016, viu-se de mãos atadas depois de o Parlamento recusar três vezes o acordo proposto por ela para desligar o Reino Unido da UE.
O que a militância reunida naquele pavilhão nas docas de Londres espera é exatamente o que May não conseguiu entregar: um adeus sem delongas às supostas amarras e travas europeias.
Os partidários do brexit, maioria absoluta entre os filiados, são nostálgicos de uma soberania que teria sido perdida quando Londres aderiu ao bloco.
Agora, querem se ver livres de leis editadas em Bruxelas (sede da governança da UE) e das contribuições financeiras ao consórcio. A possibilidade de o país tocar sua própria política comercial e fechar acordos com quem bem entender é outro canto da sereia.
Essa melodia pró-divórcio da UE Johnson sabe entoar como poucos. Na assembleia com eleitores na quarta-feira, seu refrão pouco variava: “precisamos concluir o brexit”, “devemos estar preparados para abandonar [as negociações com vistas a um acordo] se preciso”, “vamos sair em [puxa o coro da plateia] 31 de outubro”, “é nossa prioridade”.
O ex-ministro das Relações Exteriores é visto como grande fiador da separação britânica da UE: pesquisa recente do instituto YouGov mostrou que 90% dos membros do Partido Conservador acreditam que ele bancará uma saída abrupta, sem acordo, se for necessário.
Mas nem sempre Johnson, um dos líderes da campanha pelo Leave (sair) no plebiscito de 2016, pareceu tão convicto de que era hora de romper com Bruxelas —onde atuou nos anos 1990 como correspondente do Daily Telegraph. Pelo contrário, aliás.
Em livro de 2001, escreveu que era mais conveniente para o Reino Unido permanecer na UE, já que a filiação trouxera “benefícios palpáveis” para o comércio e para a instalação de cidadãos britânicos no exterior —abrir mão desse status poderia significar “uma perda de influência preocupante”.
Mais recentemente, em carta de condolências à viúva de um ex-representante do país na Comissão Europeia (braço executivo da UE), ele teceu elogios ao mercado comum do qual agora deseja tirar Londres.
Outra contradição envolve sua queda por notícias falsas (às vezes de sua própria lavra), apesar de passagens por algumas das principais publicações do Reino Unido como repórter, editor ou colunista.
No fim dos anos 1980, foi demitido do Times depois de inventar uma declaração de um historiador (e padrinho dele!) sobre o palácio que o rei Eduardo 2º teria mandado construir para encontros íntimos com seu cavaleiro preferido —que morrera 13 anos antes de a obra ser concluída.
Em Bruxelas, era conhecido como “o paradigma de exagero, distorção e mentiras, um palhaço”, no retrato de um interlocutor da época.
De lá, uma vez emplacou manchete estapafúrdia sobre o fracasso do lobby italiano para mudar as especificações de produção de preservativos, diminuindo sua largura mínima.
Com essa e outras histórias mais ou menos inventadas em que ridicularizava a governança europeia, Johnson ajudou a alimentar a repulsa de certos setores da sociedade britânica à UE —sentimento que, duas décadas depois, deve lhe servir de mola para assumir o comando do país.
Rei das gafes, ele consegue usar em seu favor a persona falastrona, propensa ao “sincericídio”. Já comparou mulheres que usam burqa a caixas de correio e ladrões de banco; o casamento gay, a zoofilia e poligamia; e Hillary Clinton, a uma enfermeira sádica de um hospital psiquiátrico.
“Onde os outros são circunspectos, controlados, profissionais, Boris é excêntrico, passa a imagem de confuso, caótico, improvisador”, diz Tony Travers, professor de política pública da London School of Economics.
“Certas pessoas veem autenticidade nisso. Seus tropeços seriam a prova de que ele é normal, ‘de verdade’.”
Além disso, afirma o pesquisador, há o otimismo inquebrantável do deputado, traço raro no establishment político hoje. “Enquanto os outros se enredam nas minúcias de serviços públicos ou discutem carga tributária e austeridade fiscal, ele simplesmente repete que basta acreditar nas coisas para que elas aconteçam.”
É lendária a impaciência de Johnson em ler briefings e relatórios de assessores durante seus mandatos como prefeito de Londres (2008-16). Na campanha de agora, fugiu de debates o quanto pôde e, quando instado a detalhar planos para áreas como saúde e transporte, saiu-se com promessas genéricas.
“Ele não tem uma visão de país, de futuro, como [a exprimeira-ministra Margaret] Thatcher ou [o presidente francês Emmanuel] Macron”, compara Travers.
“Seu pensamento é o de um livro de autoajuda americano: ‘sintam-se bem, fiquem juntos, acreditem em si mesmos, e tudo vai dar certo’.”
Por isso, sustenta o professor, algumas decisões-chave de um possível governo Johnson deverão caber a secretários (ministros).
“Ele vai ser como um diretor sem funções executivas de uma companhia.”
Ou um peixe fora d’água, como o arenque embalsamado que fez gargalhar seus correligionários na assembleia londrina.