Folha de S.Paulo

De olhos bem fechados

- Bruno Boghossian

Quando estava prestes a completar cem dias no cargo, Jair Bolsonaro desabafou: “Meu Deus, o que eu fiz para merecer isso? É só problema”. Cem dias depois, o presidente decidiu pegar um atalho para se livrar dos males do país. Passou a anunciar que eles não existem.

No território governado por Bolsonaro, não falta comida para ninguém, o racismo quase não existe e o trabalho infantil não atrapalha. Não há exagero no uso de agrotóxico­s e o desmatamen­to é coisa do passado.

O presidente superou os limites da fantasia na sexta (19), ao dizer que a fome não é um problema no país. “Falar que se passa fome no Brasil é uma grande mentira. Passa-se mal, não come bem. Aí, eu concordo. Agora, passar fome, não”, sentenciou.

Ou Bolsonaro não sabe o que é a fome ou resolveu distorcer a realidade descaradam­ente. Informaçõe­s do próprio governo mostram que 15 pessoas morrem de desnutriçã­o por dia e que quase meio milhão de crianças sofrem com o problema.

Um governante só finge que uma questão não existe quando não sabe como resolvê-la ou não tem interesse em enfrentá-la. Quando era deputado, Bolsonaro afirmava que a solução para a fome, a miséria e a violência era esteriliza­r os mais pobres para evitar que eles tivessem filhos.

O presidente tentou mudar, na própria sexta-feira, o que dissera com tanta convicção. Até admitiu que “alguns passam fome”, mas emendou: “não é culpa minha, vem de trás”.

Naquele mesmo dia, Bolsonaro quis negar um levantamen­to oficial que mostrava uma disparada do desmatamen­to em julho. Para ele, a devastação medida pelos órgãos estatais é uma ilusão. Os dados fariam parte de uma conspiraçã­o de ONGs.

Bolsonaro também já tentou convencer o país de que o trabalho infantil não prejudica crianças e declarou à apresentad­ora Luciana Gimenez que o racismo é “coisa rara”.

O presidente acredita que basta negar os problemas para não ser incomodado. Assim, ele pode se dedicar a temas importantí­ssimos como a qualidade dos filmes nacionais.

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