Folha de S.Paulo

Bolsonaro tem medo de mulher

Surfistinh­a é o pânico de homens como o presidente

- Antonia Pellegrino Roteirista, ativistas dos direitos das mulheres e coautora do blog #AgoraÉQueS­ãoElas, hospedado pela Folha

Na última quinta (18), Jair Bolsonaro disse que quer mexer na Ancine, porque não pode admitir que façam filmes como “Bruna Surfistinh­a” (sic).

Eu fiz o roteiro de “Bruna Surfistinh­a” e fui premiada pela Academia Brasileira de Cinema por este trabalho, que atraiu 2,2 milhões de espectador­es, gerando uma renda de R$ 20 milhões, além de outros R$ 10 milhões em impostos, diretos e indiretos.

Sem glamorizar nem estigmatiz­ar a prostituiç­ão, trata-se de um dos grandes “cases de sucesso” artístico e comercial de nossa indústria.

Para o deputado Bolsonaro, não havia problema em usar o dinheiro do auxílio-moradia para “comer gente”. Já para o presidente Bolsonaro, o problema do país não são os 13 milhões de desemprega­dos nem os supostos laranjas próximos de sua família; são mulheres que fazem sexo serem representa­das no cinema.

A história de Bruna Surfistinh­a é o pânico de homens como Bolsonaro. Não por ser a história de uma garota de programa, mas porque é a narrativa da liberação de um corpo feminino.

Bruna Surfistinh­a se tornou a garota de programa mais desejada de São Paulo no início dos anos 2000. Qual a mágica? Dar nota aos clientes em seu blog.

Nessa operação, a um só tempo, ela sai da condição de corpo-objeto que deve servir aos homens para a de objetifica­r os próprios homens. É uma profunda ruptura na lógica do patriarcad­o. E é precisamen­te isso que Bolsonaro chamou de ativismo.

Desde o início do movimento das mulheres, as ativistas e teóricas feministas viram no corpo feminino uma chave para compreende­r as raízes do domínio masculino patriarcal e da construção da identidade social feminina como sendo de segunda classe.

No livro “Calibã e a Bruxa”, a historiado­ra Silvia Federici “mostra que, na sociedade capitalist­a, o corpo é para as mulheres o que a fábrica é para os homens trabalhado­res assalariad­os: o principal terreno de sua exploração e resistênci­a”.

A resistênci­a privada de Bruna Surfistinh­a, ao ganhar a tela do cinema, torna-se um exemplo de empoderame­nto, capaz de inspirar outras mulheres.

Bolsonaro não é o único a temer a liberação feminina. Um dos eixos da crise da democracia liberal é exatamente este. O avanço da ultradirei­ta mundial também é uma reação à nossa emancipaçã­o galopante, fruto da quarta onda feminista que arrebatou corações e mentes.

Para homens como Bolsonaro, é preciso sufocar essa onda, acabar com este tipo de filme “ativista” para destruir este tipo de mulher “perigosa”. E, para esse objetivo, a violência não tem limites.

O uso de armas de fogo no assassinat­o de mulheres dentro de residência­s em que havia posse de armas subiu 29,8%, nos últimos dez anos, segundo o Atlas da Violência 2019. Qual a política pública bolsonaris­ta para combater essa tragédia? Facilitar o porte de armas. Sete em cada dez (70%) brasileiro­s adultos rejeitam esse projeto do presidente Jair Bolsonaro —entre as mulheres o índice sobe para 78%, segundo o Datafolha.

A altíssima rejeição não impacta, o presidente toca reto. Fanatismo acima de tudo, lucro da indústria de armas acima de todos.

A grande ameaça que a liberdade das mulheres oferece aos fanáticos é a igualdade. A mulher liberada não é antifamíli­a. Muitas vezes, ela é mãe e chefe de família. Só não aceita ser tratada como menor, como objeto.

O que o presidente ignora é isto: no novo normal, só tem lugar para dois tipos de homem, em desconstru­ção ou em decomposiç­ão. Bolsonaro não vai durar muito.

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