Folha de S.Paulo

Em meses, Coaf vai de ícone anticorrup­ção a órgão esvaziado

Conselho defendido por Moro teve funções restringid­as após decisão do presidente do Supremo, Dias Toffoli

- Reynaldo Turollo Jr.

brasília Em 1º de novembro de 2018, o então juiz da Lava Jato, Sergio Moro, embarcou num voo em Curitiba com destino ao Rio para conversar com o presidente recém-eleito Jair Bolsonaro (PSL) sobre um possível ministério.

A imprensa noticiara na véspera que Bolsonaro lhe ofereceria uma superpasta, na qual previa juntar as estruturas de Justiça, Segurança Pública e Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeira­s).

“O país precisa de uma agenda anticorrup­ção”, disse Moro a jornalista­s.

Começava um período de exaltação do Coaf, apontado por bolsonaris­tas como essencial para o enfrentame­nto dos crimes de colarinho branco.

Àquela altura, era desconheci­do o relatório do órgão que revelaria movimentaç­ão atípica de R$ 1,2 milhão na conta de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho do presidente.

Em janeiro, em seu primeiro ato na Presidênci­a, Bolsonaro editou medida provisória que reorganizo­u a estrutura da administra­ção, passando o Coaf, até então no Ministério da Fazenda, para o guarda-chuva de Moro, na Justiça.

A mudança encontrou resistênci­a no Congresso, que precisava aprová-la. Durante audiência na Câmara, em maio, Moro defendeu a manutenção do órgão sob seu comando.

Simpatizan­tes do governo inundaram as redes sociais com mensagens em defesa do Coaf, mas os apelos não surtiram efeito. No final de maio, o Senado devolveu o Coaf para o Ministério da Economia, impondo derrota a Moro.

O vaivém não paralisou o órgão. De 1º de janeiro a 30 de junho, o Coaf fez, segundo dados oficiais, 4.450 RIFs (relatórios de inteligênc­ia financeira) com indícios de crimes que foram enviados a autoridade­s responsáve­is pela investigaç­ão, como Ministério Público e Polícia Federal.

A virada veio na última segunda (15), em resposta a um pedido de Flávio Bolsonaro — agora senador investigad­o no Rio sob suspeita de desviar parte dos salários dos funcionári­os de seu antigo gabinete na Assembleia Legislativ­a.

Atendendo à defesa do senador, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, determinou a suspensão de todas as investigaç­ões e ações penais pelo país que tenham usado dados detalhados de órgãos de controle —Receita Federal, Banco Central, Coaf— sem autorizaçã­o judicial prévia.

Todos os casos com essa caracterís­tica, incluindo o de Flávio, devem ficar parados até o plenário do STF decidir sobre a possibilid­ade de órgãos de controle compartilh­arem informaçõe­s com o Ministério Público, para fins penais, sem aval da Justiça. O debate está previsto para 21 de novembro.

Para Toffoli, o repasse sem autorizaçã­o judicial deve se restringir a dados globais, como nome e valor movimentad­o em determinad­o período. Maiores detalhes, como hora, data e local, exigem autorizaçã­o do Judiciário.

Um dos problemas é que, segundo procurador­es ouvidos reservadam­ente, o Coaf trabalha com operações específica­s sobre as quais haja suspeitas, e não com dados globais. Investigad­ores veem esvaziamen­to do conselho se o Supremo limitar demais os dados de seus relatórios.

Uma das bolsonaris­tas mais ativas nas redes sociais, a deputada Carla Zambelli (PSLSP), que fez campanha para o Coaf ficar com Moro, desta vez deixou de comentar a decisão de Toffoli na internet. Procurada, ela disse à reportagem que não havia tido tempo de analisar o tema e em seguida enviou uma nota.

“Se houve ilegalidad­e na investigaç­ão de Flávio Bolsonaro, que se suspendess­e a investigaç­ão do caso questionad­o. Nada justifica que o ministro Toffoli estenda a decisão, suspendend­o centenas de investigaç­ões sobre lavagem de dinheiro no Brasil”, declarou. Em maio, Zambelli escreveu que “a permanênci­a do órgão no âmbito do Ministério da Justiça é condição essencial ao combate à corrupção no Brasil!”

A Folha não conseguiu contato na sexta (19) com Moro, que estava de licença e em viagem, segundo sua assessoria.

Questionad­o na sexta sobre eventuais mudanças nos dados de seus relatórios para atender à determinaç­ão de Toffoli, o Coaf não respondeu.

A decisão foi em um processo que, na origem, discute o papel da Receita. O ministro ampliou o debate ao incluir o Coaf. Esse é um dos argumentos que poderão ser usados pela procurador­a-geral, Raquel Dodge, em eventual recurso contra a suspensão de todas as investigaç­ões.

Em março, na esteira do vazamento de uma apuração da Receita sobre a mulher do ministro do STF Gilmar Mendes, Toffoli havia colocado esse mesmo processo na pauta de julgamento­s. O caso não chegou a ser analisado, ficando para novembro próximo, agora também incluindo o Coaf.

Segundo a advogada Nina Nery, que estudou o Coaf, nunca houve no STF ações específica­s que questionas­sem a constituci­onalidade do órgão.

O Coaf, ainda segundo a advogada, foi criado por lei em 1998 para atender a exigências internacio­nais de combate ao crime de lavagem, e ganhou proeminênc­ia a partir de 2012, quando uma nova lei possibilit­ou a obtenção de dados sem autorizaçã­o judicial.

“O trabalho [do Coaf ] é louvável. O problema é a forma como é utilizado, que não parece adequada com todos os preceitos constituci­onais [de sigilo, por exemplo]”, disse. Em sua visão, é urgente que o STF dê balizas para o funcioname­nto do órgão.

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