Folha de S.Paulo

Mesmo após queda de governador, Porto Rico continuará fervendo

Chance de movimento dar lugar a um líder populista e reacionári­o, como em outros países, é latente

- Tradução de Azahara Martín Ortega

OPINIÃO -Luis Trelles Jornalista porto-riquenho, é produtor e editor da Radio Ambulante, podcast que conta histórias da América Latina

Porto Rico está fervendo. Seis dias de manifestaç­ões abalaram uma ilha mais conhecida internacio­nalmente por ser um destino turístico no Caribe, com ambiente festivo de praia e música.

Todos os protestos tiveram a mesma obsessão: exigir a renúncia imediata do governador Ricardo Rosselló, que insiste em ficar. A atmosfera se tornou tão explosiva que Porto Rico parece um barril cheio de pólvora, e a cada dia que Rosselló permanece no cargo esse pavio fica mais e mais curto.

Um movimento assim pode ter consequênc­ias a longo prazo que os manifestan­tes não querem. Em 2013, grandes protestos surgiram em várias cidades do Brasil. O gatilho na ocasião foi o aumento dos preços do transporte público.

Assim como acontece agora em Porto Rico, o Brasil possuía uma classe média que se sentia sitiada, além de uma esmagadora desigualda­de social, que deixaram o país com seu pavio muito curto.

Na Guatemala, em 2015, houve também uma explosão semelhante de frustração em massa. Esse movimento levou à renúncia do presidente Otto Pérez Molina. Havia uma sensação de “basta” contra a corrupção muito semelhante a que é sentida hoje na ilha.

Quando acenderam o pavio em Porto Rico? Podese dizer que foi há mais de uma década, quando ocorreu uma recessão econômica paralisant­e. Ou talvez em 2015, quando uma dívida impagável de mais de US$ 70 bilhões deixou a ilha falida.

Porto Rico é um território não incorporad­o dos Estados Unidos, e muitos portorique­nhos pensam que a ilha é uma colônia americana.

Para enfrentar o problema da dívida, o Congresso em Washington impôs uma Junta de Supervisão Fiscal que controla as finanças públicas.

Essa diretoria tem o poder de tomar decisões que se sobrepõem às decisões de políticos democratic­amente eleitos na ilha. A receita usada para pagar a dívida tem sido o remédio amargo da austeridad­e.

E então o furacão Maria chegou. Cerca de 3.000 pessoas morreram nos dias e meses após a tempestade, de acordo com um estudo encomendad­o pelo próprio governo de Porto Rico. Três mil. Masa administra­ção de Rosselló insistiu por quase um ano que o furacão não deixou mais do que 64 vítimas.

A isso foi adicionado o fator Donald Trump. O presidente é o líder máximo de Porto Rico e tinha a responsabi­lidade de organizara respostado governo dos EUAàemergê­nc ia. Esses esforços foram duramente criticados por serem insuficien­tes. Trump respondeu com publicaçõe­s ofensivas noTwitt ere ataques apolíticos locais.

Com tudo isso, alguém pode se perguntar porque o pavio levou tanto tempo para ser aceso.

O detonador finalmente chegou quando o FBI prendeu duas ex-funcionári­as da alta hierarquia, acusadas de fraude e corrupção. As prisões foram seguidas pelo vazamento de conversas privadas do governa dore 11 conselheir­os próximos. Eram todos homens, claro.

O bate-papo revelou piadas misóginas e desprezo homofóbico dirigido a vários setores da sociedade porto-riquenha. Em uma mensagem que atingiu diretament­e a sensação de dore perda de muitas pessoas na ilha, um oficial de alto nível zomba dos corpos acumulados após o furacão.

Agora que as pessoas ocuparam as ruas, foi liberada a fúria acumulada de tantos anos de austeridad­e e corrupção.

Areação foi tão intensa quanto espontânea. Os cartazes e slogans que cobrem os protestos apresentam uma única afirmação :“Ricky,r enuncie agora”.Éu mm ovimentoàm­ed id adom omento. Não há espaço para ver o que virá.

Noca sodo Brasil, os manifestan­tes não alcançaram seus objetivos iniciais após os protestos de 2013. N alinha de eventos que provocaram a eleição

de Jair Bolsonaro, esses protestos são um ponto importante.

A “Primavera da América Central” de 2015 que começou na Guatemala também se desenrolou na decepção de muitas pessoas que se uniram para se livrar do presidente.

A corrupção continua sendo um mal endêmico. Jimmy Morales, o presidente eleito após as manifestaç­ões, tornou-se um aliado de Trump.

Em Porto Rico, há também a ameaça dessa onda chegar ao Caribe. Há líderes políticos que mostram em público um comportame­nto muito parecido com o que o governador Rosselló mostrou em particular, na troca de mensagens.

Quando Rosselló finalmente deixar o cargo (algo que parece quase inevitável no momento), toda a energia investida em expulsá-lo pode sumir.

E um longo pavio poderia substituir o curto. O barril, porém, ainda estará cheio de pólvora. Ninguém sabe que direção Porto Rico pode seguir depois desse grande momento de ativismo político.

Mesmo assim, os exemplos na região são preocupant­es. A possibilid­ade de o movimento dar lugar a um líder populista e reacionári­o é latente, embora não possa ser vista no meio dos protestos agora.

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 ?? Gabriella N. Baez 19.jul.19/Reuters ?? Ativistas fazem barricada em frente a policiais durante protesto contra o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, em San Juan
Gabriella N. Baez 19.jul.19/Reuters Ativistas fazem barricada em frente a policiais durante protesto contra o governador de Porto Rico, Ricardo Rosselló, em San Juan

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