Folha de S.Paulo

Por ‘cura e aventura’, brasileiro com depressão roda América do Norte de moto

- Flávia Mantovani

O que faria se soubesse que iria morrer em um mês? Ou se ganhasse na loteria? O fotógrafo brasileiro Ciro Coelho, 54, se fez essas perguntas em um momento crítico de sua vida, no início deste ano. A resposta, para ele, era clara: “Sairia de moto sem destino”.

O paulistano, que mora nos EUA desde 1996, sentia que tinha chegado ao fundo do poço de uma depressão que o acompanha há mais de 30 anos. Veio para o Brasil visitar a família e teve uma longa crise de choro na hora de voltar.

“Eu estava em um momento delicado, me perguntand­o sobre propósito. Pensei: não posso viver mais assim, com esse nível de sofrimento.”

Começou ali a planejar uma viagem de moto pela América do Norte, para “continuar são e vivo”. Surgiu a Inward Ride, “uma jornada em motociclet­a de liberdade, cura e aventura”, em sua definição.

Ele planeja sair na primeira semana de agosto de Ojai, cidade onde mora na Califórnia, e passar quatro meses na estrada. O roteiro tem algumas paradas definidas, mas a maior parte está em aberto.

O plano é ir em direção à costa california­na e passar por cidades como Seattle e Vancouver. Já sabe que vai parar por ao menos dez dias em Portland, no Oregon, onde fará um tratamento novo para depressão à base de ketamina. Pensa em talvez conhecer Toronto ou chegar até o Alasca.

“Quero menos agenda e mais propósito. Não vou completar muitos quilômetro­s por dia para não se tornar cansativo. Se não, vira um negócio que tira a liberdade”, diz.

Por causa do baixo orçamento, ele vai pernoitar em uma barraca de camping — um grande passo para quem só acampou cinco vezes na vida. “E duas delas eu odiei”, afirma, rindo.

“Mas quando me dei conta de que acampando eu poderia viajar o mundo, mudei. Não sou rico nem estou saindo de férias. Vou fazer essa viagem da maneira mais barata possível.”

Quando deu entrevista à Folha, Ciro estava preparando a bagagem e tentando reduzir peso. A lista incluía um colchonete, um saco de dormir, um fogareiro, lanterna, panela, “quase nada de roupa”, tripés leves, câmeras, kit de ferramenta­s, laptop, carregador­es e um container de água.

Para se preparar, tem feito viagens de uma noite com a moto carregada. “Muda muito a dirigibili­dade e a distribuiç­ão do peso. Atualmente está difícil retirar mais peso porque cheguei a um ponto em que tudo é essencial.”

Outra viagem que acabou servindo de teste foi uma que fez no ano passado para visitar amigas no estado de Wyoming. Foi nesse passeio de duas semanas, em que percorreu cerca de 5.000 km, que descobriu que gosta de viajar sozinho.

Ciro adora motos desde criança. Fez o primeiro passeio ainda na barriga da mãe, quando o irmão mais velho levou-a, grávida, para dar uma volta. Comprou uma para ele aos 22 anos. A partir de 1992, passou mais de 20 anos sem dirigir o veículo —decidiu voltar após a morte da mãe, em 2014.

“Me deu uma vontade louca de voltar a andar. Percebi que a vida é muita curta.”

Testou dois modelos até chegar ao atual, uma BMW R1200GS Adventure, pela qual se apaixonou “perdidamen­te”. “Ela é superconfo­rtável para viajar longas distâncias em estrada boa, mas também poderosíss­ima para andar na terra, na montanha.”

Segundo ele, sua depressão começou aos 17 anos, mas só foi diagnostic­ado aos 33. Antes, achava que a vida “era assim mesmo, difícil”.

“E a vida é difícil, mas a depressão cria uma tendência específica. Fico tentando entender por que minha experiênci­a é tão sofrida. Não tenho problema com o sofrimento humano, é que o meu sofrimento é muito gratuito. Não é resultado de algo que esteja acontecend­o, às vezes é por razão nenhuma.”

Desde o diagnóstic­o, vem se dedicando a entender a doença. Fez retiros de meditação, estudou diferentes escolas de espiritual­idade e chegou acursa rum doutor adoem psicologia por dois anos.

Os primeiros antidepres­sivos que tomou fizeram muita diferença. Com o tempo, pararam de surtir efeito, e por isso seu caso foi considerad­o resistente a tratamento­s.

Fez um teste genético que avalia a compatibil­idade de cada paciente com medicament­os psicotrópi­cos e descobriu que foi tratado com remédios que não funcionam paras eu organismo—eque podem inclusive provoca refeito contrário.

Ciro diz que considera importante se abrir sobre a doença porque a depressão carrega um estigma.

“Para o homem é muito difícil, porque tem essa ideia de que oca ratem ques e resto ico. Eé bom ter coragem, mas esconder o que está acontecend­o é um desserviço para você e para todo mundo. É algo que inibe a intimidade entre as pessoas.”

Para ele, quem não tema doença não entende de fato o que se passa na cabeça de quem tem. “Todo mundo já passou por um momento difícil na vida, mas isso é diferente da depressão clínica.”

Um ponto de virada foi

O mundo certamente não precisa de outro ‘motociclis­ta aventureir­o’. Mas, talvez, um motociclis­ta vulnerável e sincero possa fazer a diferença Ciro Coelho fotógrafo

quando se atreveu falar sobre o assunto no âmbito profission­al. Acabou conseguind­o patrocínio de uma firma de arquitetur­a para sua viagem. “Falei disso com muito receio porqueéu ma vulnerabil­idade chegara esse nível. Mas el estiveram u mareação muit opositiva .”

Para quem convive com alguém que tenha depressão, ele dá uma dica: “Não se trata de querer resolver o problema da pessoa ou carregar o fardo dela. Éter disponibil­idade amorosa, apoiá-la e ampará-la ”.

O fotógrafo diz que vive em “um estado de hipervigil­ância muito doloroso” e espera, coma viagem, senti ruma “alegria de viver mais perene”. “Nem falo de felicidade, pois é um termo mais complexo. Falo de alegria, espontanei­dade. Quero aprendera relaxar ”, e completa :“Quando ando de moto, me sinto vivo. É isso que quero recuperar”.

No caminho, Ciro pretende alimentar um blog e as redes sociais do projeto com fotos e relatos. No post inaugural, escreveu: “O mundo certamente não precisa de outro ‘motociclis­ta aventureir­o’. Mas, talvez, um motociclis­ta vulnerável e sincero possa fazer a diferença”.

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Ciro Coelho Ciro Coelho na fronteira dos estados de Nevada e Arizona, em uma viagem que fez em setembro de 2018

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