Folha de S.Paulo

Macunaíma, noruega, Pixar

Ainda não me acostumei com fato tão banal: uma mesma palavra tem vários significad­os

- Antonio Prata Escritor e roteirista, autor de “Nu, de Botas”

Recebo o email de uma amiga americana, Katrina Dodson, que está traduzindo Macunaíma pro inglês. A certa altura do livro, o narrador conta que Venceslau Pietro Pietra, o Gigante Paimã, devorador de gente, mora “no fim da rua Maranhão olhando pra noruega do Pacaembu.” Ms. Dodson me pergunta o que seria esta “noruega”. Segundo o Dicionário Aulete, ela me informa, “noruega” (com minúscula) é um vento, mas também “Terra úmida e sombria de encosta, pouco batida de sol: “Tem uma noruega lá atrás, cheia de samambaia e parasita roxa.” (Guimarães Rosa, “Sarapalha”, in Sagarana.)”.

Digo à minha amiga que jamais havia encontrado uma “noruega” com minúscula; nem soprando, nem cheia de samambaia e parasita roxa; só conhecia a Noruega maiúscula, à leste da Islândia, à oeste da Suécia. Descrevo, porém, a topografia da região e palpito que Mario de Andrade deve estar se referindo à encosta onde fica o Pacaembu.

Da noruega viajo à cuba: não a do Caribe, mas a da pia da minha casa, em Pinheiros, no fim do século passado. Eu tinha uns vinte anos e acumulei tanta louça suja na bacia de inox que ela decidiu pôr fim à porcaria de sua existência: despregou-se do tampo de granito e esborracho­u-se no chão. Liguei para um encanador e com grande esforço retórico tentei explicar o que havia acontecido. “Caiu a parte de metal, sabe? A bacia onde tem o ralo...”. O encanador me interrompe­u: “A cuba caiu”.

Num segundo vi George W. Bush, então presidente dos EUA, comemorand­o o fim da ditadura comunista: “Cuba caiu!”. Retrocedi até Nikita Kruschev, em 1959, comemorand­o a vitória de Fidel, Che Guevara e Cienfuegos sobre o ditador Fulgêncio Batista: “Cuba caiu!”. A voz do outro lado do telefone, porém, me arrancou dos explosivos eventos históricos e me trouxe de volta à gélida realidade dos azulejos: “Essa parte de dentro aí da pia, é cuba que chama”.

Tenho 41 anos e ainda não me acostumei com este fato tão banal quanto surpreende­nte da vida na Terra: uma mesma palavra tem vários significad­os. Como pode “vela” designar o artefato de barbante e cera que produz chama e o tecido inflado pelo vento nos navios? Aliás, quando o vento — uma noruega, por exemplo— bate na vela do navio, sabe o que acontece? Ela fica “panda”. Pois é, a mesma palavra para nomear a vela inflada e o urso bonachão. Só eu me espanto com isso? Manga. Barata. Mata. Cara. Caro. Pinto. Pombas!

Na faculdade de filosofia estudamos Adorno e durante um semestre inteiro nem a professora nem qualquer aluno se referiu ao absurdo que é o pensador alemão se chamar “enfeite”. Era ainda mais curioso porque o filósofo acusa a indústria cultural de ser incapaz de produzir arte de verdade; seus produtos massificad­os e pensados comercialm­ente seriam assim como meros, aham, adornos.

Uma vez, em Barcelona, fui assistir a um belo produto da indústria cultural, Toy Story. Assim que “Pixar” surgiu na tela, o cinema veio abaixo: gargalhada­s, assovios e aplausos. Soube depois que “Pixar” em catalão significa “Mijar”. Imagina uma criança, repreendid­a todos os dias por falar palavrão, sendo levada pelos próprios pais a um filme que começa com um “Mijar” de cinco metros quadrados na telona? A vida não tem lógica nenhuma, pensa o catalãozin­ho, quase se pixando de tanto rir.

E se a lógica não existe, então tudo é permitido: até o gigante Paimã em Barcelona sobre a noruega do morro de Montjuïc pixando sobre os barcos do Mediterrân­eo com tamanha fúria que as velas pandas levam os navios até Cuba —a ilha caribenha, não a cuba-libre da minha ímpia pia.

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Adams Carvalho

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