Lua sobre a floresta
Para constituinte indígena, conquista do satélite contribuiu para ‘queda do céu’
Apesar da gratidão para com Ailton Krenak, que numa inspirada palestra abriu os olhos de um estudante de jornalismo e filosofia da USP para a imensidão amazônica da causa indígena, cabe discordar de sua ideia de que viajar ao espaço seja uma tragédia.
A Lua é para todos nós. Marte também. Basta olhar para o céu, que sempre foi o símbolo da elevação humana além dos limites terrenos, em diversas culturas.
Em seu livro “Ideias para Adiar o Fim do Mundo”, Krenak combate a noção universalizante de humanidade como apoio para a aniquilação da diversidade, a negação das culturas e modos de vida particulares, o consumo irrefreável dos recursos naturais pelo industrialismo capitalista. Ele tem razão.
O deputado constituinte indígena, cuja imagem pintando o rosto com jenipapo correu o mundo em 1987, considera desperdício viajar a outros mundos, quando há tanto por fazer para salvar este aqui, a Terra. O envolvimento de bilionários como Elon Musk e Jeff Bezos no renascimento espacial seria indicação de que o verdadeiro interesse seria exaurir também outros planetas.
Krenak não vê com bons olhos a comemoração dos 50 anos da chegada do homem à Lua, completados neste sábado (20). Em lugar de viagens para visitar o firmamento, façanhas espaciais do passado e do futuro contribuiriam para “a queda do céu”, expressão que está no título de um livro do xamã e líder ianomâmi Davi Kopenawa.
Seria terrível ter de escolher entre voltar à Lua ou ir a Marte e salvar a Amazônia ou o clima da Terra. Isso não é obrigatório, contudo. Contradições e objetivos conflitantes são inerentes à condição humana, e nada impede que fertilizações cruzadas ocorram entre metas que parecem excludentes.
Num debate realizado terça-feira (16) em São Paulo com Krenak e David WallaceWells, autor do livro “A Terra Inabitável”, lembrou-se o caso de Musk. Além da SpaceX, que consegue lançar e pousar foguetes de grande porte em terra e plataformas no mar, o empresário preside também a Tesla e a SolarCity.
Graças ao visionário de origem sul-africana, a Tesla tornou-se a companhia que mais fez para deslanchar a indústria de automóveis elétricos, principal alternativa de transporte a prescindir de combustíveis fósseis que agravam o efeito estufa. E a subsidiária SolarCity também tem contribuído para disseminar sistemas acoplados de painéis solares e baterias para prover eletricidade.
A corrida espacial que pôs homens na Lua meio século atrás teve origem na Guerra Fria, é fato, e não tanto no espírito de aventura que a propaganda americana e soviética lhes atribuía. Mas ela também plantou na mente de toda uma geração a ideia de que a tecnologia pode estar a serviço do desenvolvimento humano.
Há grandeza nessa visão da vida no espaço, assim como há nos mitos de origem dos povos nativos. E há que pensar também nos muitos subprodutos da aventura espacial que hoje beneficiam a todos.
Pense no sensoriamento remoto. Sem a infinidade de satélites em órbita da Terra, cuja saga se iniciou em 1957 com o Sputnik soviético, seria impossível esquadrinhar o desmatamento da Amazônia, medir com precisão a elevação do nível do mar ou mesmo navegar com facilidade pelas ruas de cidades inviáveis como São Paulo.
Sim, o mundo está em queda, como diz Krenak —desde sempre. Cabe a nós fazer da tecnologia humana uma fábrica dos paraquedas coloridos que ele prescreve e que poderão talvez nos salvar da extinção no choque com o chão duro da realidade futura.