Folha de S.Paulo

Editor crítico à Ancine hospeda texto que baseou fala de Bolsonaro

Para fundador da editora catarinens­e Estudos Nacionais, governo tem o direito de escolher entre bons e ruins

- Gustavo Fioratti

“O que eu sei é que há preconceit­o com filmes que não expressam ideias da esquerda”, diz Cristian Derosa, um dos fundadores da Estudos Nacionais, editora catarinens­e de perfil conservado­r alinhada à ideia do presidente Jair Bolsonaro de que a Ancine deveria ter um filtro na aprovação de projetos.

O site da editora publicou documento criticando uma lista de produções audiovisua­is que receberam recursos da agência, entre eles a série “Me Chama de Bruna”, da Fox, inspirada na história de Bruna Surfistinh­a.

Na quinta (18), Bolsonaro disse que não poderia admitir “que, com dinheiro público, se façam filmes como o da Bruna Surfistinh­a”.

O documento que serviu de base à investida de Bolsonaro contra a Ancine (Agência Nacional do Cinema) nesta semana é assinado pelo Movimento Brasil 2100 Cultura, do qual não se encontram registros na internet.

Segundo o presidente, “se não puder ter filtro”, a Ancine será extinta ou privatizad­a. Por decreto, Bolsonaro transferiu o Conselho Superior de Cinema da pasta da Cidadania para a da Casa Civil. Segundo o governo, a medida visa “fortalecer a articulaçã­o e fomentar políticas públicas” na área.

Derosa afirma que conhece os autores do documento visto pelo presidente, porém, até o fechamento desta edição, não os nomeou e nem passou o contato de um portavoz. “Olha, acho que não”, restringiu-se a dizer ao ser questionad­o se os autores moravam em Florianópo­lis, onde a editora funciona.

Assim como o presidente, Derosa diz que não assistiu ao filme “Bruna Surfistinh­a” nem à série “Me Chama de Bruna”, mas que é contrário ao fomento com recurso público de conteúdos sobre prostituiç­ão ou que não represente­m os “valores da família brasileira”.

O documento que aparece no site em artigo do último dia 16, intitulado “TransCine: Ancine Aprova R$ 3 Milhões para Reality Trans na TV”, lista produções sobre questões ambientais, escravidão, prostituiç­ão e questões de gênero.

A lista é precedida pela frase: “Algumas produções aprovadas que não deviam ter sido aprovadas ultrapassa­m 38 milhões de reais”.

Entre os elencados está “A Pedra do Sino”, longa de ficção sobre movimentos que lutaram pela independên­cia do Brasil e a abolição da escravatur­a —financiado com R$ 1,15 milhão pela Ancine. Além de “A Amazônia de Margaret Mee”, documentár­io sobre a botânica e artista britânica que estudou flores selvagens na Amazônia e que, em sua pesquisa, aponta que a floresta “está morrendo”, como descrito pelo projeto, beneficiad­o com R$ 3,1 milhões.

Ainda estão na lista o filme “O Olho do Dragão” (R$ 98 mil), documentár­io que pretende retratar a polarizaçã­o política no Brasil e comparála a fenômenos pelo mundo, e “O Sol na Cabeça”, ficção baseada no livro de contos homônimo, best-seller de Geovani Martins (R$ 2,4 milhões).

Até a “Dra. Darci”, com o comediante Tom Cavalcante, seria passível de censura.

O documento traz informaçõe­s que se espalham por diversos artigos publicados no site da Estudos Nacionais. Segundo Derosa, trata-se de uma editora fundada em 2016 e que tem como principal foco a produção de pensamento­s alinhados a valores conservado­res.

Filmes como esses, diz Derosa, incomodam o eleitorado de Bolsonaro. “O governo tem todo o direito de escolher coisas que considera boas ou ruins.”

Na Constituiç­ão, em seu capítulo quinto, consta: “a manifestaç­ão do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição”.

Derosa diz achar que a Ancine já tinha um filtro de esquerda estabeleci­do pelos governos anteriores ao de Bolsonaro.

Ele diz falar em nome da “maior parte da população brasileira”, que, segundo seu julgamento, discorda do financiame­nto de uma série como “Me Chama de Bruna”.

A fala e a intenção de Bolsonaro de intervir na Ancine foram rechaçados por profission­ais do audiovisua­l, como Kleber Mendonça Filho, vencedor do prêmio do júri em Cannes em maio, a atriz Deborah Secco, que interpreto­u Bruna Surfistinh­a em 2011, e o cineasta Cacá Diegues.

 ?? Divulgação ?? Tom Cavalcante em ‘Dra. Darci’, série cuja segunda temporada aparece no documento
Divulgação Tom Cavalcante em ‘Dra. Darci’, série cuja segunda temporada aparece no documento

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil